Nonada... Assim se inicia a grande aventura contada e recontada pelo jagunço Riobaldo em "Grande Sertão Veredas", do grandicíssimo escritor brasileiro João Guimarães Rosa. Neste vídeo, Luis Otávio Teles Assumpção declama, em pleno sertão rosiano, na Fazenda Riacho do Campo MG, o trecho de abertura do romance. Sim, bem ali no sertão mineiro, nos gerais, cenário em que se passa grande parte do romance de Rosa. Ali, entre os rios Paracatu e o misterioso Urucuia... "O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho."
"Grande Sertão Veredas" é um monólogo de 600 páginas, sem divisões em capítulos, onde, em um único fôlego, se ouve apenas a voz do jagunço Riobaldo contando as aventuras dos tempos das guerras entre os grupos de jagunços, capitaneados por senhores que dominavam politicamente as grandes regiões de sertão. Especialista em Guimarães Rosa, a professora Marli Fantini Scarpelli (UFMG) costuma dizer que o livro é um monodiálogo, pois no monólogo de Riobaldo percebe-se claramente a voz do interlocutor - um doutor para quem ele narra as histórias, indo e vindo, recontando, dando voltas, como o próprio enredo. Nesse reconto dos acontecidos, Riobaldo vai aos poucos descobrindo seus sentimentos, entendendo o que se passou - e nós também, como leitores, vamos desvendando aos poucos o texto hermético do escritor. Ainda segundo Marli Fantini "Somos confrontados por discursos que nos desafiam à reformulação de nossos paradigmas estéticos, como se pode perceber desde o início do livro: 'cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...'."
Como o sertão e as pessoas do lugar, o texto e as histórias não são lineares, são tortuosos, como também são os caminhos múltiplos do sertão e o falar daquela gente simples do lugar. Rosa disse em correspondência ao seu tradudor alemão Curt Meyer-Clason: “Em geral, quase toda frase minha tem de ser meditada. Quase todas, mesmo as aparentemente curtas, simplórias, comezinhas, trazem em si algo de meditação ou aventura. ... Uma utilização, às vezes, do paradoxo.” Sim, tem de ter paciência - para ouvir e para ler...
"Grande Sertão Veredas" é um romance inovador. Trata de um amor impossível entre Riobaldo e Reinaldo, também jagunço, que, na intimidade, era Diadorim. Riobaldo amava Diadorim, os dois viviam grudados, sentiam ciúmes um do outro e em meio a jagunçagem ninguém ousava brincar e desrespeitar aquela amizade entre os dois... “Ao por tanto, que se ia, conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já disse. Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado a lado, par a par, a vai-a-vida inteira. [...] De nós dois juntos, ninguém não falava. Tinham boa prudência. Se acosturam de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam.” A cena do primeiro encontro dos dois, ainda adolescentes, na travessia do rio de-Janeiro e do São Francisco - MG, é uma obra prima de poesia em texto. Vale a pena a leitura desse trecho.
Nesse sentido, "Grande Sertão Veredas" não é um romance apenas regional, de um mineiro que registrou modos primitivos de textos e vivências locais, como querem fazer parecer alguns críticos, mas um romance universal, que trata de amores, de lutas e de guerras, de poder, de bravura, de inteligência (o julgamento de Zé Bebelo é outra obra prima por si só), de seres humanos em sua diversidade e dimensão universal.
O trecho que Luis Otávio Teles escolheu declamar, abre o romance e começa com o narrador falando ao seu interlocutor sobre uns tiros que o interlocutor ouvira pela manhã. Riobaldo explica que aquilo não era briga, era ele mesmo, um costume antigo dele... E conta a história da morte de um bezerro branco que nasceu com um defeito no lábio, que o fazia parecer às vezes com um cachorro, outras, com cara de gente, como se estivesse sempre a rir das pessoas... Achavam - o povo do lugar - que tinha a cara do demo, quem sabe era o próprio demo... e por isso o mataram. Crendices... diz o narrador, seguindo em seu monodiálogo...
Texto de Raquel Teles Yehezkel
Análise do trecho de abertura de Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa
Declamante: Luis Otávio Teles Assumpção Equipe de filmagem: direção e filmagem, Gervásio Cardoso; sonoplastia Thaisa e Marina Teles; assistente de palco, Sumaya Teles Baeta.
Local: Fazenda Riacho do Campo, Brasilândia, MG