A passagem que descreve o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim (Reinaldo), protagonistas do romance de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, é para mim o trecho mais bonito da literatura brasileira. Por isso, nada mais indicado que lê-lo quando se procura um primeiro contato com o texto deste escritor genial. Porém, carece de ser lido bem devagar, buscando entender e apreciar cada linha do linguajar sertanejo.
Indico a seguir dois textos para leituras que ajudarão a entender melhor e, em consequência, a amar os textos de Guimarães Rosa. O primeiro, é a carta escrita para Rosa pelo grande poeta Manuel Bandeira, sobre Grande Sertão e sua linguagem inovadora - como uma introdução ao estilo peculiar do escritor e ao tema do romance. Sobre o comentário nessa carta de Bandeira a respeito da decepção de Diadorim, ao final do livro, ser revelado como mulher, não me parece comprometer o caráter inovador do romance. Pelo contrário, tendo Diadorim vivido como homem a vida inteira, desde menino, quando apareceu pela primeira vez, até a sua morte, Riobaldo o amou de homem para homem, na vida do cangaço no sertão. Ele não amou uma mulher. E isso por si só era desconcertante nos anos de 1950 e mais ainda no cenário dos homens-machos do interior do Brasil. Diadoriam (Reinaldo) ser sexualmente mulher não muda o fato de Riobaldo ter amado Reinaldo, um amor homosexual, sendo Diadorim o primeiro protagonista trans do romance brasileiro.
O segundo texto é o trecho do romance que descreve o primeiro encontro entre os dois protagonistas, destacado em matéria da revista online "Verso, Prosa e Arte". Nele, Riobaldo narra a sua história para um interlocutor, um homem culto, que vai anotando tudo o que ouve e vê em caderninhos... Este interlocutor, que não fala nunca, que não dialoga apesar de ser inquirido o tempo todo pelo narrador, é o escritor em sua viagem pelo sertão mineiro. Marli Fantini Scarpelli (UFMG) genialmente denomina este texto de monodiálogo. São 600 páginas em um único fôlego, num monodiálogo difuso. Há também, nessa matéria, um curta-metragem lindíssimo, de 8 minutos: "Rio de-Janeiro, Minas", de Marilyn da Cunha Bezerra, imperdível, lento, lírico, para se ver sem pressa...
O rio São Francisco, poeticamente descrito neste trecho, é o mesmo que serviu para as primeiras "Entradas" dos desbravadores portugueses que partiram da Bahia adentrando o interior do Brasil Colônia... O velho Chico... descrito por Rosa como um rio de águas tranquilas em sua superfície, mas obscuras em suas profundezas, assim como nós. "A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo (in GSV)." Quase como um mar, de onde de uma margem não se avista a outra, como nesse primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim (Reinaldo) - que se amararam desde então, adolescentes ainda - e que numa canoinha guiada por um menino "barranqueiro" entraram no temeroso Chico, vindos pelo rio de-Janeiro (de Minas)...
Minha mãe achava que o rio São Francisco era do pai dela rsrsrs pois nasceu e cresceu às suas margens, nas fazendas Lagoa Verde - Machados, em Bom Despacho, Minas. Durante toda a minha vida atravessei o São Francisco a caminho de minha cidade natal, Dores do Indaiá, ou a caminho da fazenda da família na região de João Pinheiro, Bonfinópolis, em Brasilândia. Em Morada Nova, quando se vai de Dores do Indaiá para a fazenda, se atravessa o Chico de balsa, ainda hoje. Em Três Marias, se pode comer peixe fresco às margens da represa, num dos restaurantes próximos à ponte.
Parafraseando Riobaldo, o São Francisco é o meu rio de amor. Ele disse isso a respeito do Urucuia, rio em que já pesquei chegando a ele por seu afluente, o Conceição, que cortava a fazenda do meu avô lá pelas bandas do Urucuia, região de Unaí. A Riacho do Campo, fazenda que a família mantém até hoje, onde cresci com os pés em veredas, fica situada ali, entre os rios Urucuia e o Paracatu, no município de Brasilândia de Minas, no sertão-veredas descrito por Rosa nesse grandioso romance.
Falar sobre este tema enche meu coração e, espero, possa também preencher o seu - como nos dias em que o velho Chico transborda às margens em alegrias...
Raquel Teles Yehezkel
Israel 3.2.2023
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Link para a carta de Manuel Bandeira a João G. Rosa. Acessado em 3.2.2023:
https://www.revistaprosaversoearte.com/joao-guimaraes-rosa-carta-de-manuel-bandeira-o-romance-de-riobaldo/?amp=1
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Link para o filme e o trecho em que Riobaldo e Diadorim se conhecem - acessado em 3.2.2023:
https://www.revistaprosaversoearte.com/riobaldo-e-diadorim-o-encontro-no-porto-do-rio-de-janeiro-e-a-travessia-pelo-rio-sao-francisco/?amp=1