Estimulada pela leitura de importante texto da professora de Literatura Brasileira Judaica, Lyslei Nascimento (UFMG): "Escritores judeus: uma face judaica da Literatura Brasileira" - um extenso mapeamento da contribuição de escritores brasileiros judeus para a Literatura Brasileira -, apresentado na Conferência "Judeus nas Américas" na Universidade de Kansas, e ainda sob a influência do Dia da Lembrança da Shoah / do Holocausto celebrado anualmente em Israel, registro a seguir três poemas de três consagrados escritores brasileiros que, dentre outros, registraram seus sentimentos em relação à Shoah e à Segunda Guerra Mundial.
São eles: "Canção da Judia de Varsóvia" de Jorge Amado (1950), "Balada dos Mortos no Campo de Concentração de Vinícius de Moraes (1946) e "Sentimento do Mundo" de Carlos Drummond de Andrade (1940).
CANÇÃO DA JUDIA DE VARSÓVIA, POR JORGE AMADO (Trecho)
Meu nome, já não o sei...
Só de Judia me chamam.
Meu rosto já foi bonito, na primavera em Varsóvia.
Um dia, chegou o inverno,
Trazido pelos nazistas;
E nunca mais quis ir embora.
Um dia já fui bonita,
Tive noivo, e tive sonhos.
Trazidos pelos nazistas
Veio o terror, veio a morte.
As flores se acabaram...
As criancinhas também.
Meu noivo foi fuzilado na madrugada do inverno.
Alegres jardins de outrora hoje já não existem.
Nunca mais verei as flores.
As criancinhas morreram de fome, pelas sarjetas,
Furadas de baionetas, nas diversões dos nazistas..
Morreram as flores também.
As aves, para onde foram?
Cadê Varsóvia sorrindo?
Está Varsóvia gemendo...
Está Varsóvia morrendo...
Tão lindo era meu nome, poema para o meu noivo!
Riu o nazi junto a mim:
"Judia que és bonita"
- Judia não tem beleza, judia nem nome tem...
Tomou da minha beleza nas suas mãos assassinas,
Quem me dera ter morrido na madrugada do inverno!
Sou pobre moça judia na cidade de Varsóvia...
Ontem mataram meu pai na vista de minha mãe.
Em campo de concentração minha beleza acabou.
Meu nome, já não o sei - só de judia me chamam.
Nunca fiz mal a ninguém,
E tanto mal que me fizeram!
Coração não têm os nazis...
São feras que se soltaram pelas ruas de Varsóvia.
Inverno que não acaba, só há desgraça e tristeza,
Soluços de toda a gente e as gargalhadas dos nazis!
Antes, nas tardes alegres,
Meu noivo vinha à rua,
Seus olhos nos meus pousavam,
Meus lábios só tinham risos.
Mas um dia.... Eles chegaram.
Vestiam camisas pardas.
Coração? Eles não tinham.
Meu noivo havia partido, tão belo, com o seu fuzil!
Mataram-no de madrugada, nesse inverno que chegava...
Esse campo não tem flores...
Mais parece um cemitério...
Em campo de concentração
São mil judias comigo, mas nenhuma nome tem.
Só, sobre o peito, uma marca feita com ferro em brasa,
Como um rebanho de gado
Para os açougues dos nazis.
Minha beleza se foi...
Meus lábios já não sorriem.
Ontem mataram meu pai na vista de minha mãe;
Meus olhos são secos, secos não restou nenhuma lágrima.
(Continua)
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BALADAS DOS MORTOS NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO, POR VINÍCIUS DE MORAES
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Ocos, flácidos cadáveres
Como espantalhos, largados
Na sementeira espectral
Dos ermos campos estéreis
De Buchenwald e Dachau.
Cadáveres necrosados
Amontoados no chão
Esquálidos enlaçados
Em beijos estupefatos
Como ascetas siderados
Em presença da visão.
Cadáveres putrefatos
Os magros braços em cruz
Em vossas faces hediondas
Há sorrisos de giocondas
E em vossos corpos, a luz
Que da treva cria a aurora.
Cadáveres fluorescentes
Desenraizados do pó
Que emoção não dá-me o ver-vos
Em vosso êxtase sem nervos
Em vossa prece tão só
Grandes, góticos cadáveres!
Ah, doces mortos atônitos
Quebrados a torniquete
Vossas louras manicuras
Arrancaram-vos as unhas
No requinte de tortura
Da última toalete...
A vós vos tiraram a casa
A vós vos tiraram o nome
Fostes marcados a brasa
Depois voz mataram de fome!
Vossa peles afrouxadas
Sobre os esqueletos dão-me
A impressão que éreis tambores -
Os instrumentos do Monstro -
Desfibrados a pancada:
Ó mortos de percussão!
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Vós sois o húmus da terra
De onde a árvore do castigo
Dará madeira ao patíbulo
E de onde os frutos da paz
Tombarão no chão da guerra!
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SENTIMENTO DO MUNDO, POR CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
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Deixo este registro com a esperança de que possamos manter "nossas velas içadas e o nosso leme no caminho certo" nesses tempos tão sombrios, conforme proferido pela professora Lyslei Nascimento, em 19 de abril de 2024, na Conferência "Judeus nas Américas", na Universidade de Kansas, em Lawrence.
Raquel Teles Yehezkel
Israel 7/5/2024
Fontes:
- Nascimento, Lyslei: "Escritores judeus: uma face judaica da Literatura Brasileira":
Link do site em breve
- Dicionário de escritores judeus no Brasil:
https://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/index.php?web=nej&lang=1&page=839&menu=515&tipo=1
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