terça-feira, 28 de maio de 2024

Para gostar de ler Guimarães Rosa: O encontro de Riobaldo e Diadorim no de-Janeiro e São Francisco

A passagem que descreve o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim (Reinaldo), protagonistas do romance de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, é para mim o trecho mais bonito da literatura brasileira. Por isso, nada mais indicado que lê-lo quando se procura um primeiro contato com o texto deste escritor genial. Porém, carece de ser lido bem devagar, buscando entender e apreciar cada linha do linguajar sertanejo. 

Indico a seguir dois textos para leituras que ajudarão a entender melhor e, em consequência, a amar os textos de Guimarães Rosa. O primeiro, é a carta escrita para Rosa pelo grande poeta Manuel Bandeira, sobre Grande Sertão e sua linguagem inovadora - como uma introdução ao estilo peculiar do escritor e ao tema do romance. Sobre o comentário nessa carta de Bandeira a respeito da decepção de Diadorim, ao final do livro, ser revelado como mulher, não me parece comprometer o caráter inovador do romance. Pelo contrário, tendo Diadorim vivido como homem a vida inteira, desde menino, quando apareceu pela primeira vez, até a sua morte, Riobaldo o amou de homem para homem, na vida do cangaço no sertão. Ele não amou uma mulher. E isso por si só era desconcertante nos anos de 1950 e mais ainda no cenário dos homens-machos do interior do Brasil. Diadoriam (Reinaldo) ser sexualmente mulher não muda o fato de Riobaldo ter amado Reinaldo, um amor homosexual, sendo Diadorim o primeiro protagonista trans do romance brasileiro.

O segundo texto é o trecho do romance que descreve o primeiro encontro entre os dois protagonistas, destacado em matéria da revista online "Verso, Prosa e Arte". Nele, Riobaldo narra a sua história para um interlocutor, um homem culto, que vai anotando tudo o que ouve e vê em caderninhos... Este interlocutor, que não fala nunca, que não dialoga apesar de ser inquirido o tempo todo pelo narrador, é o escritor em sua viagem pelo sertão mineiro. Marli Fantini Scarpelli (UFMG) genialmente denomina este texto de monodiálogo. São 600 páginas em um único fôlego, num monodiálogo difuso. Há também, nessa matéria, um curta-metragem lindíssimo, de 8 minutos: "Rio de-Janeiro, Minas", de Marilyn da Cunha Bezerra, imperdível, lento, lírico, para se ver sem pressa...

O rio São Francisco, poeticamente descrito neste trecho, é o mesmo que serviu para as primeiras "Entradas" dos desbravadores portugueses que partiram da Bahia adentrando o interior do Brasil Colônia... O velho Chico... descrito por Rosa como um rio de águas tranquilas em sua superfície, mas obscuras em suas profundezas, assim como nós. "A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo (in GSV)." Quase como um mar, de onde de uma margem não se avista a outra, como nesse primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim (Reinaldo) - que se amararam desde então, adolescentes ainda - e que numa canoinha guiada por um menino "barranqueiro" entraram no temeroso Chico, vindos pelo rio de-Janeiro (de Minas)...

Minha mãe achava que o rio São Francisco era do pai dela rsrsrs pois nasceu e cresceu às suas margens, nas fazendas Lagoa Verde - Machados, em Bom Despacho, Minas. Durante toda a minha vida atravessei o São Francisco a caminho de minha cidade natal, Dores do Indaiá, ou a caminho da fazenda da família na região de João Pinheiro, Bonfinópolis, em Brasilândia. Em Morada Nova, quando se vai de Dores do Indaiá para a fazenda, se atravessa o Chico de balsa, ainda hoje. Em Três Marias, se pode comer peixe fresco às margens da represa, num dos restaurantes próximos à ponte.

Parafraseando Riobaldo, o São Francisco é o meu rio de amor. Ele disse isso a respeito do Urucuia, rio em que já pesquei chegando a ele por seu afluente, o Conceição, que cortava a fazenda do meu avô lá pelas bandas do Urucuia, região de Unaí. A Riacho do Campo, fazenda que a família mantém até hoje, onde cresci com os pés em veredas, fica situada ali, entre os rios Urucuia e o Paracatu, no município de Brasilândia de Minas, no sertão-veredas descrito por Rosa nesse grandioso romance.

Falar sobre este tema enche meu coração e, espero, possa também preencher o seu - como nos dias em que o velho Chico transborda às margens em alegrias...

Raquel Teles Yehezkel

Israel 3.2.2023

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Link para a carta de Manuel Bandeira a João G. Rosa. Acessado em 3.2.2023: 

https://www.revistaprosaversoearte.com/joao-guimaraes-rosa-carta-de-manuel-bandeira-o-romance-de-riobaldo/?amp=1

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Link para o filme e o trecho em que Riobaldo e Diadorim se conhecem - acessado em 3.2.2023:

https://www.revistaprosaversoearte.com/riobaldo-e-diadorim-o-encontro-no-porto-do-rio-de-janeiro-e-a-travessia-pelo-rio-sao-francisco/?amp=1 

Rio São Francisco

Córrego Caiçara, Riacho do Campo, MG

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Grandes escritores brasileiros e textos sobre o Holocausto

Estimulada pela leitura de importante texto da professora de Literatura Brasileira Judaica, Lyslei Nascimento (UFMG): "Escritores judeus: uma face judaica da Literatura Brasileira" - um extenso mapeamento da contribuição de escritores brasileiros judeus para a Literatura Brasileira -, apresentado na Conferência "Judeus nas Américas" na Universidade de Kansas, e ainda sob a influência do Dia da Lembrança da Shoah / do Holocausto celebrado anualmente em Israel, registro a seguir três poemas de três consagrados escritores brasileiros que, dentre outros, registraram seus sentimentos em relação à Shoah e à Segunda Guerra Mundial.

São eles: "Canção da Judia de Varsóvia" de Jorge Amado (1950), "Balada dos Mortos no Campo de Concentração de Vinícius de Moraes (1946) e "Sentimento do Mundo" de Carlos Drummond de Andrade (1940). 


CANÇÃO DA JUDIA DE VARSÓVIA, POR JORGE AMADO (Trecho)


Meu nome, já não o sei...

Só de Judia me chamam.

Meu rosto já foi bonito, na primavera em Varsóvia.

Um dia, chegou o inverno,

Trazido pelos nazistas;

E nunca mais quis ir embora.


Um dia já fui bonita,

Tive noivo, e tive sonhos.

Trazidos pelos nazistas

Veio o terror, veio a morte.

As flores se acabaram...


As criancinhas também.

Meu noivo foi fuzilado na madrugada do inverno.

Alegres jardins de outrora hoje já não existem.

Nunca mais verei as flores.

As criancinhas morreram de fome, pelas sarjetas,

Furadas de baionetas, nas diversões dos nazistas..

Morreram as flores também.


As aves, para onde foram?

Cadê Varsóvia sorrindo?

Está Varsóvia gemendo...

Está Varsóvia morrendo...


Tão lindo era meu nome, poema para o meu noivo!

Riu o nazi junto a mim:

"Judia que és bonita"

- Judia não tem beleza, judia nem nome tem...

Tomou da minha beleza nas suas mãos assassinas,

Quem me dera ter morrido na madrugada do inverno!


Sou pobre moça judia na cidade de Varsóvia...

Ontem mataram meu pai na vista de minha mãe.

Em campo de concentração minha beleza acabou.

Meu nome, já não o sei - só de judia me chamam.

Nunca fiz mal a ninguém,

E tanto mal que me fizeram!


Coração não têm os nazis...

São feras que se soltaram pelas ruas de Varsóvia.

Inverno que não acaba, só há desgraça e tristeza,

Soluços de toda a gente e as gargalhadas dos nazis! 


Antes, nas tardes alegres,

Meu noivo vinha à rua,

Seus olhos nos meus pousavam,

Meus lábios só tinham risos.

Mas um dia.... Eles chegaram.

Vestiam camisas pardas.

Coração? Eles não tinham.

Meu noivo havia partido, tão belo, com o seu fuzil!

Mataram-no de madrugada, nesse inverno que chegava...


Esse campo não tem flores...

Mais parece um cemitério...

Em campo de concentração

São mil judias comigo, mas nenhuma nome tem.

Só, sobre o peito, uma marca feita com ferro em brasa,

Como um rebanho de gado

Para os açougues dos nazis.


Minha beleza se foi...

Meus lábios já não sorriem.

Ontem mataram meu pai na vista de minha mãe;

Meus olhos são secos, secos não restou nenhuma lágrima.

(Continua) 

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BALADAS DOS MORTOS NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO, POR VINÍCIUS DE MORAES 


Cadáveres de Nordhausen

Erla, Belsen e Buchenwald!

Ocos, flácidos cadáveres

Como espantalhos, largados

Na sementeira espectral

Dos ermos campos estéreis

De Buchenwald e Dachau.

Cadáveres necrosados

Amontoados no chão

Esquálidos enlaçados

Em beijos estupefatos

Como ascetas siderados

Em presença da visão.

Cadáveres putrefatos

Os magros braços em cruz

Em vossas faces hediondas

Há sorrisos de giocondas

E em vossos corpos, a luz

Que da treva cria a aurora.

Cadáveres fluorescentes

Desenraizados do pó

Que emoção não dá-me o ver-vos

Em vosso êxtase sem nervos

Em vossa prece tão só

Grandes, góticos cadáveres!

Ah, doces mortos atônitos

Quebrados a torniquete

Vossas louras manicuras

Arrancaram-vos as unhas

No requinte de tortura

Da última toalete...

A vós vos tiraram a casa

A vós vos tiraram o nome

Fostes marcados a brasa

Depois voz mataram de fome!

Vossa peles afrouxadas

Sobre os esqueletos dão-me

A impressão que éreis tambores -

Os instrumentos do Monstro -

Desfibrados a pancada:

Ó mortos de percussão!

Cadáveres de Nordhausen

Erla, Belsen e Buchenwald!

Vós sois o húmus da terra

De onde a árvore do castigo

Dará madeira ao patíbulo

E de onde os frutos da paz

Tombarão no chão da guerra!

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SENTIMENTO DO MUNDO, POR CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.


Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.


Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.


Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação

do sineiro, da viúva e do microscopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer


esse amanhecer

mais noite que a noite. 

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Deixo este registro com a esperança de que possamos manter "nossas velas içadas e o nosso leme no caminho certo" nesses tempos tão sombrios, conforme proferido pela professora Lyslei Nascimento, em 19 de abril de 2024, na Conferência "Judeus nas Américas", na Universidade de Kansas, em Lawrence.


Raquel Teles Yehezkel 

Israel 7/5/2024


Fontes: 

- Nascimento, Lyslei: "Escritores judeus: uma face judaica da Literatura Brasileira":

Link do site em breve

- Dicionário de escritores judeus no Brasil: 

https://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/index.php?web=nej&lang=1&page=839&menu=515&tipo=1