terça-feira, 28 de maio de 2024

Para gostar de ler Guimarães Rosa: O encontro de Riobaldo e Diadorim no de-Janeiro e São Francisco

A passagem que descreve o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim (Reinaldo), protagonistas do romance de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, é para mim o trecho mais bonito da literatura brasileira. Por isso, nada mais indicado que lê-lo quando se procura um primeiro contato com o texto deste escritor genial. Porém, carece de ser lido bem devagar, buscando entender e apreciar cada linha do linguajar sertanejo. 

Indico a seguir dois textos para leituras que ajudarão a entender melhor e, em consequência, a amar os textos de Guimarães Rosa. O primeiro, é a carta escrita para Rosa pelo grande poeta Manuel Bandeira, sobre Grande Sertão e sua linguagem inovadora - como uma introdução ao estilo peculiar do escritor e ao tema do romance. Sobre o comentário nessa carta de Bandeira a respeito da decepção de Diadorim, ao final do livro, ser revelado como mulher, não me parece comprometer o caráter inovador do romance. Pelo contrário, tendo Diadorim vivido como homem a vida inteira, desde menino, quando apareceu pela primeira vez, até a sua morte, Riobaldo o amou de homem para homem, na vida do cangaço no sertão. Ele não amou uma mulher. E isso por si só era desconcertante nos anos de 1950 e mais ainda no cenário dos homens-machos do interior do Brasil. Diadoriam (Reinaldo) ser sexualmente mulher não muda o fato de Riobaldo ter amado Reinaldo, um amor homosexual, sendo Diadorim o primeiro protagonista trans do romance brasileiro.

O segundo texto é o trecho do romance que descreve o primeiro encontro entre os dois protagonistas, destacado em matéria da revista online "Verso, Prosa e Arte". Nele, Riobaldo narra a sua história para um interlocutor, um homem culto, que vai anotando tudo o que ouve e vê em caderninhos... Este interlocutor, que não fala nunca, que não dialoga apesar de ser inquirido o tempo todo pelo narrador, é o escritor em sua viagem pelo sertão mineiro. Marli Fantini Scarpelli (UFMG) genialmente denomina este texto de monodiálogo. São 600 páginas em um único fôlego, num monodiálogo difuso. Há também, nessa matéria, um curta-metragem lindíssimo, de 8 minutos: "Rio de-Janeiro, Minas", de Marilyn da Cunha Bezerra, imperdível, lento, lírico, para se ver sem pressa...

O rio São Francisco, poeticamente descrito neste trecho, é o mesmo que serviu para as primeiras "Entradas" dos desbravadores portugueses que partiram da Bahia adentrando o interior do Brasil Colônia... O velho Chico... descrito por Rosa como um rio de águas tranquilas em sua superfície, mas obscuras em suas profundezas, assim como nós. "A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo (in GSV)." Quase como um mar, de onde de uma margem não se avista a outra, como nesse primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim (Reinaldo) - que se amararam desde então, adolescentes ainda - e que numa canoinha guiada por um menino "barranqueiro" entraram no temeroso Chico, vindos pelo rio de-Janeiro (de Minas)...

Minha mãe achava que o rio São Francisco era do pai dela rsrsrs pois nasceu e cresceu às suas margens, nas fazendas Lagoa Verde - Machados, em Bom Despacho, Minas. Durante toda a minha vida atravessei o São Francisco a caminho de minha cidade natal, Dores do Indaiá, ou a caminho da fazenda da família na região de João Pinheiro, Bonfinópolis, em Brasilândia. Em Morada Nova, quando se vai de Dores do Indaiá para a fazenda, se atravessa o Chico de balsa, ainda hoje. Em Três Marias, se pode comer peixe fresco às margens da represa, num dos restaurantes próximos à ponte.

Parafraseando Riobaldo, o São Francisco é o meu rio de amor. Ele disse isso a respeito do Urucuia, rio em que já pesquei chegando a ele por seu afluente, o Conceição, que cortava a fazenda do meu avô lá pelas bandas do Urucuia, região de Unaí. A Riacho do Campo, fazenda que a família mantém até hoje, onde cresci com os pés em veredas, fica situada ali, entre os rios Urucuia e o Paracatu, no município de Brasilândia de Minas, no sertão-veredas descrito por Rosa nesse grandioso romance.

Falar sobre este tema enche meu coração e, espero, possa também preencher o seu - como nos dias em que o velho Chico transborda às margens em alegrias...

Raquel Teles Yehezkel

Israel 3.2.2023

****

Link para a carta de Manuel Bandeira a João G. Rosa. Acessado em 3.2.2023: 

https://www.revistaprosaversoearte.com/joao-guimaraes-rosa-carta-de-manuel-bandeira-o-romance-de-riobaldo/?amp=1

****

Link para o filme e o trecho em que Riobaldo e Diadorim se conhecem - acessado em 3.2.2023:

https://www.revistaprosaversoearte.com/riobaldo-e-diadorim-o-encontro-no-porto-do-rio-de-janeiro-e-a-travessia-pelo-rio-sao-francisco/?amp=1 

Rio São Francisco

Córrego Caiçara, Riacho do Campo, MG

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Grandes escritores brasileiros e textos sobre o Holocausto

Estimulada pela leitura de importante texto da professora de Literatura Brasileira Judaica, Lyslei Nascimento (UFMG): "Escritores judeus: uma face judaica da Literatura Brasileira" - um extenso mapeamento da contribuição de escritores brasileiros judeus para a Literatura Brasileira -, apresentado na Conferência "Judeus nas Américas" na Universidade de Kansas, e ainda sob a influência do Dia da Lembrança da Shoah / do Holocausto celebrado anualmente em Israel, registro a seguir três poemas de três consagrados escritores brasileiros que, dentre outros, registraram seus sentimentos em relação à Shoah e à Segunda Guerra Mundial.

São eles: "Canção da Judia de Varsóvia" de Jorge Amado (1950), "Balada dos Mortos no Campo de Concentração de Vinícius de Moraes (1946) e "Sentimento do Mundo" de Carlos Drummond de Andrade (1940). 


CANÇÃO DA JUDIA DE VARSÓVIA, POR JORGE AMADO (Trecho)


Meu nome, já não o sei...

Só de Judia me chamam.

Meu rosto já foi bonito, na primavera em Varsóvia.

Um dia, chegou o inverno,

Trazido pelos nazistas;

E nunca mais quis ir embora.


Um dia já fui bonita,

Tive noivo, e tive sonhos.

Trazidos pelos nazistas

Veio o terror, veio a morte.

As flores se acabaram...


As criancinhas também.

Meu noivo foi fuzilado na madrugada do inverno.

Alegres jardins de outrora hoje já não existem.

Nunca mais verei as flores.

As criancinhas morreram de fome, pelas sarjetas,

Furadas de baionetas, nas diversões dos nazistas..

Morreram as flores também.


As aves, para onde foram?

Cadê Varsóvia sorrindo?

Está Varsóvia gemendo...

Está Varsóvia morrendo...


Tão lindo era meu nome, poema para o meu noivo!

Riu o nazi junto a mim:

"Judia que és bonita"

- Judia não tem beleza, judia nem nome tem...

Tomou da minha beleza nas suas mãos assassinas,

Quem me dera ter morrido na madrugada do inverno!


Sou pobre moça judia na cidade de Varsóvia...

Ontem mataram meu pai na vista de minha mãe.

Em campo de concentração minha beleza acabou.

Meu nome, já não o sei - só de judia me chamam.

Nunca fiz mal a ninguém,

E tanto mal que me fizeram!


Coração não têm os nazis...

São feras que se soltaram pelas ruas de Varsóvia.

Inverno que não acaba, só há desgraça e tristeza,

Soluços de toda a gente e as gargalhadas dos nazis! 


Antes, nas tardes alegres,

Meu noivo vinha à rua,

Seus olhos nos meus pousavam,

Meus lábios só tinham risos.

Mas um dia.... Eles chegaram.

Vestiam camisas pardas.

Coração? Eles não tinham.

Meu noivo havia partido, tão belo, com o seu fuzil!

Mataram-no de madrugada, nesse inverno que chegava...


Esse campo não tem flores...

Mais parece um cemitério...

Em campo de concentração

São mil judias comigo, mas nenhuma nome tem.

Só, sobre o peito, uma marca feita com ferro em brasa,

Como um rebanho de gado

Para os açougues dos nazis.


Minha beleza se foi...

Meus lábios já não sorriem.

Ontem mataram meu pai na vista de minha mãe;

Meus olhos são secos, secos não restou nenhuma lágrima.

(Continua) 

****

BALADAS DOS MORTOS NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO, POR VINÍCIUS DE MORAES 


Cadáveres de Nordhausen

Erla, Belsen e Buchenwald!

Ocos, flácidos cadáveres

Como espantalhos, largados

Na sementeira espectral

Dos ermos campos estéreis

De Buchenwald e Dachau.

Cadáveres necrosados

Amontoados no chão

Esquálidos enlaçados

Em beijos estupefatos

Como ascetas siderados

Em presença da visão.

Cadáveres putrefatos

Os magros braços em cruz

Em vossas faces hediondas

Há sorrisos de giocondas

E em vossos corpos, a luz

Que da treva cria a aurora.

Cadáveres fluorescentes

Desenraizados do pó

Que emoção não dá-me o ver-vos

Em vosso êxtase sem nervos

Em vossa prece tão só

Grandes, góticos cadáveres!

Ah, doces mortos atônitos

Quebrados a torniquete

Vossas louras manicuras

Arrancaram-vos as unhas

No requinte de tortura

Da última toalete...

A vós vos tiraram a casa

A vós vos tiraram o nome

Fostes marcados a brasa

Depois voz mataram de fome!

Vossa peles afrouxadas

Sobre os esqueletos dão-me

A impressão que éreis tambores -

Os instrumentos do Monstro -

Desfibrados a pancada:

Ó mortos de percussão!

Cadáveres de Nordhausen

Erla, Belsen e Buchenwald!

Vós sois o húmus da terra

De onde a árvore do castigo

Dará madeira ao patíbulo

E de onde os frutos da paz

Tombarão no chão da guerra!

****

SENTIMENTO DO MUNDO, POR CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.


Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.


Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.


Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação

do sineiro, da viúva e do microscopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer


esse amanhecer

mais noite que a noite. 

----

Deixo este registro com a esperança de que possamos manter "nossas velas içadas e o nosso leme no caminho certo" nesses tempos tão sombrios, conforme proferido pela professora Lyslei Nascimento, em 19 de abril de 2024, na Conferência "Judeus nas Américas", na Universidade de Kansas, em Lawrence.


Raquel Teles Yehezkel 

Israel 7/5/2024


Fontes: 

- Nascimento, Lyslei: "Escritores judeus: uma face judaica da Literatura Brasileira":

Link do site em breve

- Dicionário de escritores judeus no Brasil: 

https://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/index.php?web=nej&lang=1&page=839&menu=515&tipo=1

domingo, 5 de março de 2023

Língua e literatura nas mídias sociais

Costumo seguir alguns linguistas e professores de literatura. E esta não é uma atividade entediante, sou constantemente pega por surpresas e discussões incríveis.

Por exemplo, em 3.3.2023, o professor Marcos Bagno falou sobre o episódio de Fernanda Torres ter citado que a etimologia de "coitado" seria de coito, quando, segundo ele, qualquer consulta a um dicionário mostraria que se origina de "coita" que significa "sofrer". Em 4.3.23, o professor Sírio Possenti aproveitou essa discussão para acrescentar que leu numa revista uma resenha interressante sobre a língua, à qual fez a ressalva de que o autor não utiliza o conceito de "português popular", mas de "português errado", conceito este inadequado na linguística moderna ao se referir a um falante nativo de uma língua. 

Nesta mesma linha, Bagno fez outra postagem em 4.3.2023 criticando escolhas no uso da língua, por uma revista que ele costuma ler, dizendo que nela foi abolido o uso legítimo do gerúndio, amplamente difundido na língua brasileira, em prol da forma "a + verbo no infinitivo" como usado em Portugal. E que também estariam abolindo o uso da oração adjetiva (relativa), como em: "a reforçar as desigualdades", quando deveria ser "que reforça as desigualdades".

Ainda sobre língua e literatura, a postagem mais interessante, que despertou este texto, foi feita em 4.3.2023 pelo professor Deonisio da Silva. Ele postou um documento levantado numa pesquisa de Claudio Soares, mostrando que o conto "O Alienista" de Machado de Assis, originalmente publicado em "folhetim", tinha um fim diferente daquele que conhecemos dos livros de Machado. Nos comentários do post, Cláudio Soares, autor da pesquisa, afirma que isso não surpreendeu os pesquisadores, pois é sabido que entre a publicação em folhetins de então até a publicação em forma de livro, o texto poderia sofrer revisões. E cita como exemplo dessas mudanças um "lapso" existente em Dom Casmurro, cuja história no folhetim começaria em Cantagalo enquanto no livro que conhecemos, começa em Itaguaí. 

Todas essas observações me levaram à reflexões sobre os saberes e informações disponíveis nas redes, me conectando a uma conversa com meu filho que recentemente optou por se desconectar delas com o objetivo de se dedicar à atividades mais significativas do seu dia a dia e se afastar das superficialidades difundidas pelas redes. Pelas muitas informações preciosas que recolho das mídias sociais, umas mais relevantes outras menos, tendo a enxergá-las como meio de colher informações, e não apenas como fonte de distração, que também são, sem dúvidas. Informações que chegam em pílulas, cabendo a cada um se aprofundar ou não conforme seu interesse. Tudo ali disposto como em um bufê self-service onde cada um, a princípio, escolhe entre o joio e o trigo o que quer ler e ver. Mesmo consciente de que nem todos podem escolher, tendo a achar que a rede deveria nos servir, nos ser útil, abrir nossas cabeças para conhecimentos múltiplos, possíveis de serem filtrados por meio de mecanismos reguladores diversos. Caberia a quem regular o que ali se deposita? A quem caberia regular o seu uso? Esta é mais uma discussão desafiadora na pauta das atualidades... 

É incrível poder acompanhar em tempo real as mais modernas discussões sobre a nossa língua e literatura e, ao mesmo tempo, a ampla discussão sobre o uso das mídias sociais... Mas haja cérebro... 

****

P.S. As reflexões que levanto nas mídias sociais, que os professores trazem às redes, muitas vezes são as sementes que vão gerar estudos, resenhas ou artigos. Com algumas mudanças... 

Israel 5.3.2023

Raquel Teles Yehezkel:


Fontes:

- Postagem de Deonisio da Silva sobre o final do conto "O Alienista" de Machado de Assis e sobre mudanças em Dom Casmurro, em trabalhos de Cláudio Soares. Link acessado em 5.3.2033: 

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid04ih6uVPhG23GrKN6jnJSenDYdYAmDJYubzjDu6H6YyNzfqMDVGfkkU3LWrfRoH9Ql&id=100000369896973&mibextid=Nif5oz

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0uimzSxFgzSTNuLK3nbstfeR7LDCQPdGJeMueLAYG874VAi3oVD9q1G4cuj4TkmN2l&id=100000369896973&mibextid=Nif5oz

- Link das postagem de Marcos Bagno, acessadas em 5.3.2023 de

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid02vTuukYqQRdVAH8njiBLTa5xcpQNTDDFnQwV6CbmPJMLunhXtDDYg4YmpkhdEsVgMl&id=100002532385353&mibextid=Nif5oz

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid02nwWW4guzf5YyENH4qzVPKXFqzT7HRLsZjU2NJU4WecMckTbX2v89bv4UvXa8uLrzl&id=100002532385353&mibextid=Nif5o


- Link da postagem de Sírio Possenti acessadas em 5.3.2023: 

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0GnQEXyyjKirnyESBJ5zDjCGPPi8GnN4VZT48JhbX83BQBsvnoPguWzbDLkv6j5P2l&id=100012193955602&mibextid=Nif5oz

- Link para postagem de Cláudio Soares sobre as mudanças ocorridas em Dom Casmurro entre o folhetim e o livro, acessado em 5.3.2023:

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid024nBm7zHRNjzgVS16yPretQxLn8m3T3FGnmfsDvSw6FMfnEauLpfGvNGRJ2p8A6rol&id=589386353&mibextid=Nif5oz

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Nonada


Nonada... Assim se inicia a grande aventura contada e recontada pelo jagunço Riobaldo em "Grande Sertão Veredas", do grandicíssimo escritor brasileiro João Guimarães Rosa. Neste vídeo, Luis Otávio Teles Assumpção declama, em pleno sertão rosiano, na Fazenda Riacho do Campo MG, o trecho de abertura do romance. Sim, bem ali no sertão mineiro, nos gerais, cenário em que se passa grande parte do romance de Rosa. Ali, entre os rios Paracatu e o misterioso Urucuia...  "O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho."

"Grande Sertão Veredas" é um monólogo de 600 páginas, sem divisões em capítulos, onde, em um único fôlego, se ouve apenas a voz do jagunço Riobaldo contando as aventuras dos tempos das guerras entre os grupos de jagunços, capitaneados por senhores que dominavam politicamente as grandes regiões de sertão. Especialista em Guimarães Rosa, a professora Marli Fantini Scarpelli (UFMG) costuma dizer que o livro é um monodiálogo, pois no monólogo de Riobaldo percebe-se claramente a voz do interlocutor - um doutor para quem ele narra as histórias, indo e vindo, recontando, dando voltas, como o próprio enredo. Nesse reconto dos acontecidos, Riobaldo vai aos poucos descobrindo seus sentimentos, entendendo o que se passou - e nós também, como leitores, vamos desvendando aos poucos o texto hermético do escritor. Ainda segundo Marli Fantini "Somos confrontados por discursos que nos desafiam à reformulação de nossos paradigmas estéticos, como se pode perceber desde o início do livro: 'cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...'."

Como o sertão e as pessoas do lugar, o texto e as histórias não são lineares, são tortuosos, como também são os caminhos múltiplos do sertão e o falar daquela gente simples do lugar. Rosa disse em correspondência ao seu tradudor alemão Curt Meyer-Clason: “Em geral, quase toda frase minha tem de ser meditada. Quase todas, mesmo as aparentemente curtas, simplórias, comezinhas, trazem em si algo de meditação ou aventura. ... Uma utilização, às vezes, do paradoxo.” Sim, tem de ter paciência - para ouvir e para ler... 

"Grande Sertão Veredas" é um romance inovador. Trata de um amor impossível entre Riobaldo e Reinaldo, também jagunço, que, na intimidade, era Diadorim. Riobaldo amava Diadorim, os dois viviam grudados, sentiam ciúmes um do outro e em meio a jagunçagem ninguém ousava brincar e desrespeitar aquela amizade entre os dois... “Ao por tanto, que se ia, conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já disse. Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado a lado, par a par, a vai-a-vida inteira. [...] De nós dois juntos, ninguém não falava. Tinham boa prudência. Se acosturam de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam.” A cena do primeiro encontro dos dois, ainda adolescentes, na travessia do rio de-Janeiro e do São Francisco - MG, é uma obra prima de poesia em texto. Vale a pena a leitura desse trecho.

Nesse sentido, "Grande Sertão Veredas" não é um romance apenas regional, de um mineiro que registrou modos primitivos de textos e vivências locais, como querem fazer parecer alguns críticos, mas um romance universal, que trata de amores, de lutas e de guerras, de poder, de bravura, de inteligência (o julgamento de Zé Bebelo é outra obra prima por si só), de seres humanos em sua diversidade e dimensão universal.

O trecho que Luis Otávio Teles escolheu declamar, abre o romance e começa com o narrador falando ao seu interlocutor sobre uns tiros que o interlocutor ouvira pela manhã. Riobaldo explica que aquilo não era briga, era ele mesmo, um costume antigo dele... E conta a história da morte de um bezerro branco que nasceu com um defeito no lábio, que o fazia parecer às vezes com um cachorro, outras, com cara de gente, como se estivesse sempre a rir das pessoas... Achavam - o povo do lugar - que tinha a cara do demo, quem sabe era o próprio demo... e por isso o mataram. Crendices... diz o narrador, seguindo em seu monodiálogo... 


Texto de Raquel Teles Yehezkel 

Análise do trecho de abertura de Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa 

Declamante: Luis Otávio Teles Assumpção Equipe de filmagem: direção e filmagem, Gervásio Cardoso; sonoplastia Thaisa e Marina Teles; assistente de palco, Sumaya Teles Baeta.

Local: Fazenda Riacho do Campo, Brasilândia, MG

Luis Otávio Teles Assumpção 

Equipe de apoio
Fazenda Riacho do Campo 30.7.2021




sábado, 20 de julho de 2013

HISTÓRIA LITERÁRIA E JULGAMENTO DE VALOR, E VALORES MODERNOS: EM "ALTAS LITERATURAS", DE LEYLA PERRONE-MOISÉS



Raquel Teles Yehezkel










RESUMO
HISTÓRIA LITERÁRIA E JULGAMENTO DE VALOR, E VALORES MODERNOS: EM ALTAS LITERATURAS, DE LEYLA PERRONE-MOISÉS





Trabalho requisitado pela disciplina
Ensino de Poesia Brasileira,
ministrada pelo prof. Marcos Rogério.





Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 7 de março de 2008

HISTÓRIA LITERÁRIA E JULGAMENTO DE VALOR, E VALORES MODERNOS: EM ALTAS LITERATURAS, DE LEYLA PERRONE-MOISÉS

Raquel Teles Yehezkel



Introdução
No livro Altas Literaturas, Leyla Perrone-Moisés discute a questão das obras e autores canônicos e os julgamentos de valores que permeiam as listagens canônicas, defendendo a posição de que ao escolher falar de certos escritores do passado e não de outros, os escritores-críticos efetuam um julgamento de valor. Assim fazendo, estabelecem sua própria tradição “e de certa maneira reescreve a história literária” (p.11). Os valores que eles atribuem aos autores do passado não são valores a priori, mas valores capazes de garantir o prosseguimento de seu próprio trabalho e da escrita literária geral (p.12). Ao escolher sua própria tradição, esses escritores propõem novos cânones e, dialogando com autores do passado ou do presente, praticam formas particulares de intertextualidade (p.14). “Na pós-modernidade, a recusa da unidade, da homogeneidade, da totalidade, da continuidade histórica, das metanarrativas, impede, em princípio, o julgamento estético, e torna a teoria e a crítica improcedentes” (p.16), entretanto, o julgamento continua a existir  e a servir de base ao estabelecimento de novos cânones.

Resumo
Leyla Perrone-Moisés cita a posição de Wellek, que propõe recebermos “com apreço a ênfase dada a aspectos até agora inexplorados da história literária, mas, na prática, a ‘estética da recepção’ não pode ser outra coisa senão a história das interpretações críticas efetuadas por autores e leitores, uma história do gosto que sempre esteve incluída na história da crítica” (p.20).

A autora crê que apesar das tentativas de atualização da história literária, esta continua se debatendo com alguns de seus antigos problemas, como “limites de seu campo, visada nacional ou internacional, relato diacrônico ou sincrônico, papel do autor e do leitor, e com um novo problema: a desconfiança dos ‘grandes relatos” (p.20). Se a história literária, desde seus primórdios, acompanhou os princípios da história geral, como a busca da objetividade, a noção de progresso e estas mostravam-se inadequadas para os fatos estéticos, a questão fundamental, levantada por Wellek e apoiada pela autora, é a de “julgamento de valor implícito em todo discurso histórico, e ainda mais quando se trata de história da arte” (p. 21). Sendo, então, o julgamento de valor contingente e relativo, “os historiadores da literatura julgam sem explicitar critérios, como se reportassem a um consenso acerca de obras maiores e menores” (p.21).

Perrone-Moisés então questiona para que serviria a história da literatura, e para que serviria a literatura. Se fosse sua alta utilidade de “esclarecer, alargar e valorizar nossa experiência do mundo”, admite-se que a história do conjunto de suas realizações maximize o proveito que podemos tirar do contato com cada realização particular. Se fosse a fruição da literatura no seu mais alto conhecimento e valorização da experiência humana, é-se levado a defender um certo tipo de história literária que otimiza a fruição de obras (p. 21). Nietzshe respondeu à questão “para que serve a história”, e num correlato das respostas dele às respostas “para que serve a história da literatura” Perrone-Moisés sugere que a ‘história monumental’ corresponderia a uma história literária fortemente valorativa, em que figuram apenas as grandes obras, e o que é grande ou pequeno dependerá sempre do sistema de valores do crítico; a ‘história antiquária’ corresponderia a um levantamento minucioso e erudito em que se recolhe tudo o que se produziu na literatura de um país ou de uma época e o inconveniente seria considerar tudo igualmente interessante só pelo fato de ter existido, e por ser massante teria pouco poder estimulante para a produção e para a fruição da literatura no presente; a ‘história crítica’ corresponderia a um julgamento severo e condenatório do passado, provocando o seu esquecimento, o que poderia ser um estimulante para a vida presente, mas teria o inconveniente de efetuar um recalque do passado e uma conseqüente negação das origens (p.23).

Nesse ponto, a autora adverte que convém não esquecer que as grandes obras ocorrem “tendo como chão e húmus uma cadeia ininterrupta de obras menores” (p. 24), e que os produtores da literatura presente são tão devedores das grandes obras do passado quanto dos milhares de obras menores que prepararam terreno para as maiores. Em balanço final, Perrone-Moisés retoma Nietzsche dizendo que “o conhecimento do passado, em todos os tempos, só é desejável quando está a serviço do presente, quando ele desenraiza os germes fecundos do futuro” (p.24), sugerindo uma posição ‘sincrônica’, no sentido de que o passado só lhe interessa do ponto de vista do presente, de onde o ‘futuro germina’.

A leitura valorativa do passado literário dos escritores críticos modernos afeta significantemente a historiografia literária, já que quando o escritor escolhe entre os nomes e obras do passado “é ao mesmo tempo o historiador e o agente de sua própria linguagem” (Paul de Mand apud Perrone-Moisés: p.26). Ao escrever sua obra, o novo autor prossegue uma história de que deve estar consciente; e, ao mesmo tempo, ele a transforma, e até certo ponto a nega, pelo novo rumo que lhe imprime. Selecionando e comentando certos autores do passado, visam estabelecer sua própria tradição e assim procedem a uma releitura e a uma reescritura da história literária, respondendo a uma necessidade de situar, orientar e valorizar sua própria ação no presente (p.26).

A história literária se firmou sob a égide da história geral, ou seja, uma sucessão de acontecimentos lineares no tempo, responsável por uma concepção causalista e finalista da história, decorrendo daí a concepção da tradição como fonte de ensinamentos e, consequentemente, de dívida dos novos para os antigos (p.27). Dessa forma a história literária tem sido apresentada numa listagem de nomes alinhados em seqüência cronológica como se fosse essa a única disposição lógica.

Desde o início do século passado essa concepção cronológica foi perdendo espaço para uma percepção do tempo mais fragmentada, correspondente à fragmentação da experiência em geral. Na esteira da mudança na concepção do tempo, desde o romantismo, a relação do escritor com seus precedentes também vem mudando, deixando de ser a ‘tradição’ uma garantia moral e estética, mas o novo, o original e único tornaram-se valores, sendo o ‘o novo’ o modelo para medir o antigo, o presente decidindo o passado (p.29-30).

A partir dessa mudança, Perrone-Moisés passa a discute a opinião de diversos autores-críticos, desde o romantismo até a atualidade, sobre a questão da sincronia ou diacronia da história literária. Citando Eliot como ‘uma radicalização das propostas românticas’ em que a tradição deixa de ser um dom ou um fardo para ser recriada, conquistada: “o passado deveria ser alterado pelo presente tanto quanto o presente é dirigido pelo passado” (p.31). Pound considera o conhecimento do passado indispensável para que saibamos “o nosso próprio endereço” no tempo (p.31), considerando que todas as sociedades, antigas e medievais, são contemporâneas, em tempo e espaço, coexistindo no que chamamos de moderno; para ele o escritor dever atingir “um padrão universal que não dá atenção nem ao tempo nem ao país” (p.32). Para Borges, cada escritor cria seus precursores e o trabalho deles “modifica nossa concepção do passado, com há de modificar o futuro” (p.33). Para Octávio Paz a “imaginação poética muda com a imagem do mundo, particular a cada época, mas a poesia permanece a mesma, em todos os tempos e lugares”, tendo portanto uma visão da história literária ao mesmo tempo sincrônica e relacional (p.34). Michel Butar sugere que “para movimentar-se nessa floresta de livros, o novo escritor precisa procurar brechas, ultrapassar a velha ordem literária, inventar percursos novos, proceder a uma reorganização do conjunto”, sem organização não há sentido (p.35). Harold de Campos fundamenta sua defesa pela ‘história sincrônica’ pela busca de uma dinamização da produção poética presente, que “permite o desenho de novas tábuas inteligíveis de funções-relações”. Oswald de Andrade, servindo-se da poesia de Gregório de Mattos optou por um enfoque não linear da evolução, defendendo a idéia da “Antropofagia” cultural. Por fim Perrone-Moisés conclui que a história literária não é concebível em termos de uma linha traçada e conhecida, “porque a literatura (recepção e produção) é sempre função da leitura, isto é, presentificação valorativa do passado” (p.39).

Sobre a questão de que se há progresso e permanência na literatura, é categórica em afirmar que “não há progresso na arte, não há progresso na literatura”, quando se propõe uma história sincrônica da literatura. Citando Octávio Paz que diz que “em perpétua mutação a poesia não avança” e que “cada poema é um objeto único, criado por uma ‘técnica’ que morre no exato momento de sua criação” (p.48), conclui que “o que evolui, sem no entanto progredir, é a técnica: meio histórico de captar a intemporal poesia”. Butor concebe a literatura como “obra coletiva”, defendendo um certo progresso da arte e do mundo (p.43-44). Ítalo acha que um clássico é sempre novo, inesperado, inédito, indo de encontro à concepção da ‘grande poesia’ “de qualidade universal e intemporal” (p.44). Harold defende defende uma idéia de progresso não no sentido de hierarquia de valor: “há uma transformação qualitativa de culturas. Nesse sentido a arte evolui” (p.45). Por fim, Perrone-Moisés questiona se a tentação de afirmar a intemporalidade da poesia, dificilmente conciliável com a concepção do progresso da história, não seria em todos os escritores críticos um resíduo de idealismo (p.46).

A autora afirma que a história literária não sabe o que fazer com espécimes singulares, cuja originalidade constitui um valor estético, defendendo que por sua própria natureza e projeto, o fenômeno artístico se produz sempre como singular e como busca de diferença e originalidade absolutas, então, como ensinar o que só ocorre uma vez, já que ensinar é sempre repetir, questiona, citando Barthes (p.47). Assim defende que a obra renasce sempre diversa em cada leitura, não podendo assim mensurar a obra em seu nascimento ou recepção, pois se uma obra fosse julgada apenas pelo número de pessoas que alcançou, obras como Grande Sertão-Veredas ou como a de Mallarmé não mereceriam registro na história (p.49).

Por fim Perrone-Moisés conclui que os nomes escolhidos pelos críticos-escritores tendem a assumir naqueles que os designam com maior radicalidade, um valor sagrado de fetiche (p.53). E que abolir a linearidade, instituindo uma simultaneidade que traz o passado a um espaço valorativo do presente é uma atividade perigosa, a qual os escritores-críticos modernos tentam driblar buscando legitimar suas escolhas com critérios mais abrangentes do que os do gosto individual (p.53). Portanto, a história proposta pelos escritores-críticos modernos não é a de um observador neutro, mas a de alguém engajado “numa ação que faz prosseguir o próprio objeto da narrativa histórica” (p.59).

Essas mudanças descritas acima, ocorridas no decorrer do séc.xx, recebeu o nome de pós-modernidade e tem repercussões no cânone literário, e mobilizou muitos teóricos da literatura. Pôs-se um questionamento sobre a mortalidade ou imortalidade do que até o fim do século xix era consenso. Sobre essa questão, sabe-se que muito da sobrevivência de uma obra, que implica na existência de leitores, depende muito de sua manutenção nos currículos escolares (p.190). Há na atualidade inúmeras discussões sobre o que é realmente canônico ou não, envolvendo conceitos de classes e raças, fazendo com que essas listas se tornassem suspeitas: quem as defendem e por que o fazem. Há posições divergentes. O autor-crítico Harold Bloon, por exemplo, defende uma posição mais elitista que crê que o acesso à literatura é para poucos alunos (p.200). Já a autora acredita que o cânone que sobrevive é o reconhecido como ativo pela cultura viva, pois um cânone imposto torna-se ‘letra morta’ (p.201).

A autora critica também a globalização da cultura, a cultura de massa que tornou-se industrial em escala planetária e com tal “fornecedora de produtos padronizados segundo uma demanda de baixa qualidade estética que ela ao mesmo tempo cria e satisfaz (p.203).

Conclusão

Como sabemos, objetos literários e artísticos de qualquer ordem, incluem-se aqui os próprios estudos críticos e as listagem dos cânones, são formas de representações da subjetividade e da sociedade em contextos históricos determinados, e, assim sendo, formam um espaço para o redimensionamento das práticas sociais e políticas, o que exige dos estudos críticos de hoje sentidos mais abrangentes.

Bibliografia
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p.19-60 e p.174-215.

A ESSÊNCIA POÉTICA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO



FALE / UFMG / 200801 / POESIA BRASILEIRA: MARCOS ROGÉRIO CORDEIRO
ALUNOS: Raquel Teles Yehezkel e Rogério Robert Rodrigues
TEMA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO
FONTE: NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Vozes, 1974.

A essência da poética de João Cabral de Melo Neto mostra a tentativa de desvendar os elementos concretos da realidade. Sempre guiado pela lógica, pelo raciocínio, seus poemas evitam análise e exposição do eu e voltam-se para o universo dos objetos, das paisagens, dos fatos sociais, sem apelar para o sentimentalismo, adquirindo ora valor simbólico, uma reflexão sobre a poesia, ora valor de crítica social. Por isso, o prazer estético que sua poesia pode provocar deriva sobretudo de uma leitura racional, analítica, não do envolvimento emocional com o texto. Essas características levaram a crítica a ver em sua obra uma "ruptura com o lirismo" ou a considerar sua expressão poética como "antilírica".

Características da poética de João Cabral de Melo Neto:
- Geração de 45: geração pós-II Guerra (p.31): rejeitam aspectos do Modernismo que consideravam “pseudo-espontaneismo” (p.30); refinamento formal e aprofundamento interior: compreensão da forma como revestimento de conteúdos significativos, dicção elevada, contra o verso-livre: “reacionarismo estético”. (p.28-29)
- João Cabral fez escolha oposta à sua geração, ligando-se ao Modernismo: dicção corrente e precisa, não abandona de todo o verso livre, prosificação do verso. (p.30)
- Em oposição à sua geração, busca a clareza em vez da pureza; a sondagem e o aprofundamento de vivências no lugar do controle da elaboração poética (p.31)
- A formulação poética só é perfeita qdo passa pelo crivo da racionalidade. (p.32)
- Ceticismo ostensivo; rompimento com a poesia de expressão de sent. pessoais. (p.32)
- Análise crítica e reflexiva do processo criativo. Ruptura com o lirismo. (p.33)
- Aproxima-se do Modernismo pela clareza da linguagem e o verso livre, do Concretismo pela organização rigorosa, e da radicação regional. (p.34)
- Parte da poesia latente ao espírito em estado de sono (pré-consciente / onírica), valorizando a indeterminação, a inconsistência e a fluidez das coisas (articulando-se em torno de palavras preferenciais como nuvem, sonho, vulto e fantasma: “semântica do vago” p.39), para uma poesia completamente consciente (p.36-37), alternando estados contraditórios: sono/vigília, mundo onírico / mundo perceptivo (p.38)
- Disputa entre os fenômenos transitórios subjetivos, interiores, inconsistentes (inconsciente) e a máquina da linguagem: construção consciente: “o poeta deve ganhar essa luta para poder construir o poema (Valery). (p.42-43) Caos x Delimitação (p.45).
- Verso como organismo que vive dos germes mortos da experiência subjetiva: lembranças e sentimentos morrem para renascer na linguagem. (p.43)
- Vontade de petrificar a vida interior, paralisando os sentimentos e a inquietação (p.46), ideal poético de contenção e de impessoalidade, de petrificação ou mineralização das palavras e ideal ético de resistência fria, de dureza obstinada e agressiva, ferindo como lâmina de faca (comparação à prosa de G.Ramos p.171).
- Versos parentéticos (entre parêntesis) c/ observações irônicas, pausas reflexivas. (p.37)
- Percepção do sentido oculto das coisas inertes, do invisível. (p.37)
- Identidade metafórica do sujeito, que é nuvem, pedra, etc (p.40).
- Mutação figurativa do mesmo objeto a outro (ex: nuvens para cabelos), ligados entre si por elementos comuns como brancura, leveza. (p.40)
- Fazer poético como construção, obedecendo à razão construtiva e geométrica. (p.41)
- Poeta como engenheiro que calcula a impressão a ser produzida por sua obra. (p.42)
- Função da construção poética: “máquina de comover (Le Corbusier)”. (p.41)
- Poética negativa: exposta nos poemas sobre o processo poético (“Psicologia da Composição” p.51) “o poeta compõe ao se decompor”. Na oscilação do pensamento reflexivo, que interpela, seleciona, julga e analisa, agindo conscientemente contra-corrente da experiência psicológica desfaz o que ela faz, despe-a de seus excessos, provocando o vazio: que a palavra, na construção da linguagem, vem preencher (p.54): depuração e esvaziamento (operações básicas que constituem um só princípio de composição p.63).
- Movimento das palavras acarretando o movimento das coisas e vice-versa (linguagem- objeto p.162)
- Distanciamento entre a disposição afetiva pessoal e a matéria da linguagem, entre o sujeito que fala e o objeto de que se fala. (p.63)


Paisagem pelo telefone
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pemambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.

O POETA  (Pedra do Sono – 1942)

No telefone do poeta
desceram vozes sem cabeça
desceu um susto desceu o medo
da morte de neve.

O telefone com asa e o poeta
pensando que fosse o avião
que levaria de sua noite furiosa
aquelas máquinas em fuga

Ora, na sala do poeta o relógio
marcava horas que ninguém vivera.
O telefone nem mulher nem sobrado,
ao telefone o pássaro-trovão.

Nuvens porém brancas de pássaros
acenderam a noite do poeta
e nos olhos, vistos por fora, do poeta
vão nascer duas flores secas.



Tecendo a Manhã 
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(in: A Educação pela Pedra: 1966)