sábado, 20 de julho de 2013

A ESSÊNCIA POÉTICA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO



FALE / UFMG / 200801 / POESIA BRASILEIRA: MARCOS ROGÉRIO CORDEIRO
ALUNOS: Raquel Teles Yehezkel e Rogério Robert Rodrigues
TEMA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO
FONTE: NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Vozes, 1974.

A essência da poética de João Cabral de Melo Neto mostra a tentativa de desvendar os elementos concretos da realidade. Sempre guiado pela lógica, pelo raciocínio, seus poemas evitam análise e exposição do eu e voltam-se para o universo dos objetos, das paisagens, dos fatos sociais, sem apelar para o sentimentalismo, adquirindo ora valor simbólico, uma reflexão sobre a poesia, ora valor de crítica social. Por isso, o prazer estético que sua poesia pode provocar deriva sobretudo de uma leitura racional, analítica, não do envolvimento emocional com o texto. Essas características levaram a crítica a ver em sua obra uma "ruptura com o lirismo" ou a considerar sua expressão poética como "antilírica".

Características da poética de João Cabral de Melo Neto:
- Geração de 45: geração pós-II Guerra (p.31): rejeitam aspectos do Modernismo que consideravam “pseudo-espontaneismo” (p.30); refinamento formal e aprofundamento interior: compreensão da forma como revestimento de conteúdos significativos, dicção elevada, contra o verso-livre: “reacionarismo estético”. (p.28-29)
- João Cabral fez escolha oposta à sua geração, ligando-se ao Modernismo: dicção corrente e precisa, não abandona de todo o verso livre, prosificação do verso. (p.30)
- Em oposição à sua geração, busca a clareza em vez da pureza; a sondagem e o aprofundamento de vivências no lugar do controle da elaboração poética (p.31)
- A formulação poética só é perfeita qdo passa pelo crivo da racionalidade. (p.32)
- Ceticismo ostensivo; rompimento com a poesia de expressão de sent. pessoais. (p.32)
- Análise crítica e reflexiva do processo criativo. Ruptura com o lirismo. (p.33)
- Aproxima-se do Modernismo pela clareza da linguagem e o verso livre, do Concretismo pela organização rigorosa, e da radicação regional. (p.34)
- Parte da poesia latente ao espírito em estado de sono (pré-consciente / onírica), valorizando a indeterminação, a inconsistência e a fluidez das coisas (articulando-se em torno de palavras preferenciais como nuvem, sonho, vulto e fantasma: “semântica do vago” p.39), para uma poesia completamente consciente (p.36-37), alternando estados contraditórios: sono/vigília, mundo onírico / mundo perceptivo (p.38)
- Disputa entre os fenômenos transitórios subjetivos, interiores, inconsistentes (inconsciente) e a máquina da linguagem: construção consciente: “o poeta deve ganhar essa luta para poder construir o poema (Valery). (p.42-43) Caos x Delimitação (p.45).
- Verso como organismo que vive dos germes mortos da experiência subjetiva: lembranças e sentimentos morrem para renascer na linguagem. (p.43)
- Vontade de petrificar a vida interior, paralisando os sentimentos e a inquietação (p.46), ideal poético de contenção e de impessoalidade, de petrificação ou mineralização das palavras e ideal ético de resistência fria, de dureza obstinada e agressiva, ferindo como lâmina de faca (comparação à prosa de G.Ramos p.171).
- Versos parentéticos (entre parêntesis) c/ observações irônicas, pausas reflexivas. (p.37)
- Percepção do sentido oculto das coisas inertes, do invisível. (p.37)
- Identidade metafórica do sujeito, que é nuvem, pedra, etc (p.40).
- Mutação figurativa do mesmo objeto a outro (ex: nuvens para cabelos), ligados entre si por elementos comuns como brancura, leveza. (p.40)
- Fazer poético como construção, obedecendo à razão construtiva e geométrica. (p.41)
- Poeta como engenheiro que calcula a impressão a ser produzida por sua obra. (p.42)
- Função da construção poética: “máquina de comover (Le Corbusier)”. (p.41)
- Poética negativa: exposta nos poemas sobre o processo poético (“Psicologia da Composição” p.51) “o poeta compõe ao se decompor”. Na oscilação do pensamento reflexivo, que interpela, seleciona, julga e analisa, agindo conscientemente contra-corrente da experiência psicológica desfaz o que ela faz, despe-a de seus excessos, provocando o vazio: que a palavra, na construção da linguagem, vem preencher (p.54): depuração e esvaziamento (operações básicas que constituem um só princípio de composição p.63).
- Movimento das palavras acarretando o movimento das coisas e vice-versa (linguagem- objeto p.162)
- Distanciamento entre a disposição afetiva pessoal e a matéria da linguagem, entre o sujeito que fala e o objeto de que se fala. (p.63)


Paisagem pelo telefone
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pemambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.

O POETA  (Pedra do Sono – 1942)

No telefone do poeta
desceram vozes sem cabeça
desceu um susto desceu o medo
da morte de neve.

O telefone com asa e o poeta
pensando que fosse o avião
que levaria de sua noite furiosa
aquelas máquinas em fuga

Ora, na sala do poeta o relógio
marcava horas que ninguém vivera.
O telefone nem mulher nem sobrado,
ao telefone o pássaro-trovão.

Nuvens porém brancas de pássaros
acenderam a noite do poeta
e nos olhos, vistos por fora, do poeta
vão nascer duas flores secas.



Tecendo a Manhã 
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(in: A Educação pela Pedra: 1966)

Nenhum comentário:

Postar um comentário