NARRATIVAS DO SEC XX –
PROF. CLÁUDIA CAMPOS 200702 /FALE/UFMG
Alunos: HENRIQUE, LUCIARA,
RAQUEL, ROGÉRIA, TIAGO, SORAYA, VIRGÍNIA
“O RETÁBULO DE SANTA
JOANA CAROLINA”, de OSMAN LINS,
in: Nove, Novena,
1996.
1. ESTRUTURA DA NARRATIVA: Osman Lins nasceu no interior
do Pernambuco, filho de Teófanes Lins, alfaiate, e neto de Joana Carolina,
professora primária da zona rural. Estudou Economia, e francês na Aliança
Francesa de Paris; escreveu O Visitante (1955), Os Gestos (1957),
O Fiel e a Pedra (1961), Nove, Novena (1966), Avalovara
(1973) e A Rainha dos Cárceres da Grécia (1976), fez algumas incursões
na pintura geométrica. Faleceu em 1978.
- retábulo: “estrutura ornamental de pedra ou madeira que se eleva na parte posterior de um altar”.
- é a 5a de 9, portanto, centro do livro / centro do retábulo Nove, Novena.
- Gênero textual indefinido: micro-romance (Paes), novela, biografia ou narrativa (conforme autor).
- Rigidez estética, “metáfora estrutural”: concisão de palavras que formam cenas como quadros.
·
Pode-se analisar a narrativa sob três
perspectivas: dimensão estética-estrutural (enredo / personagens fragmentados;
narradores múltiplos); dimensão histórico-social (condição social / pobreza);
dimensão mítico-religiosa (“rituais” de passagens; certa indefinção temporal /
espacial).
·
Narrativa
composta em 12 Mistérios narrados por diferentes narradores, marcados por um
sinal gráfico específico: 12 cenas da vida da protagonista, do nascimento à
morte (ciclo da vida).
- Cada Mistério é introduzido por uma epígrafe (proêmio, louvação, ) que liga o macro-sistema da vida ao evento a ser narrado: alusão às forças da natureza que regem a vida humana.
·
Cada
Mistério narra um evento independente (início e fim), correspondentes ao ciclo
vida (nascimento, infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice,
morte); ao ciclo do ano (de outubro a setembro) e suas estações (seca /
enchente / frio /calor); a um ciclo do zodíaco (de Libra a Virgem); às cenas da
Paixão de Cristo (caminho para a purificação); aos “trabalhos” de ordem mítica
(como Hércules) que marcam passagens (ciclos de 12 ou 7); ou seja, os 12
retábulos da vida de JC, juntos, formam “O Retábulo de Santa Joana Carolina”.
2. EPÍGRAFES (Virgínia e Soraya)
3. MARCAS DE RELIGIOSIDADE (Rogéria e Luciara)
4. MULTIPLICIDADE NARRATIVA (Henrique e Tiago)
5. JOANA CAROLINA: PERSONAGEM
- Constrói-se c/ palavras, por partes, o “Retábulo”: estruturas de um “altar” que, pronto, possibilitaria o vislumbre da Santa; imagem de Joana Carolina: epicentro p/ onde se converge toda a atenção: voltada para a história de JC, centro da narrativa.
- A construção não se pretende fidedigna ao ser real: a natureza humana não pode ser apreendida em sua integridade; constrói-se então, pela arte, a imagem do objeto que pretende retratar. No “Retábulo de SJC” a “imagem” é construída pela voz de outros.
- O “Retábulo” pronto, tem-se a visão do todo, um vislumbre do real, uma espécie de mimese, de caricatura do real.
·
O autor realiza com sucesso as noções
de incompletude e de fragmentação das obras e dos seres, características das
literaturas modernas: explora a relação de afinidades e diferenças entre o ser
vivo e o ser de ficção, manifestada através da personagem.
·
Juntos, enredo e personagem exprimem
visão da vida, significados e valores que animam o texto, elaborado pela
técnica.
·
“A personagem representa a
possibilidade de adesão afetiva do leitor, pelos mecanismos de identificações,
projeção, transferência” (Cândido: 1987, p.54), portanto a leitura depende da
aceitação da verdade da personagem por parte do leitor, assim, a “construção
estrutural é o maior responsável pela força e eficácia” da narrativa (1987,
p.55).
·
Osman Lins parece ter consciência de
que a “noção a respeito de um ser, elaborada por outro ser, é sempre incompleta
em relação a percepção física inicial” (Cândido: 1987, p.56), e que o
conhecimento dos seres é fragmentário.
·
O autor investiga, através das vozes
dos narradores, os fragmentos desse ser, os fragmentos de JC, “que nos são
dados por uma conversa, um ato, uma seqüência de atos, uma afirmação, uma
informação” (1987, p.56).
- A sensação de incompletude da personagem JC está intrisicamente ligada à fragmentação estrutural da obra e à multiplicidade narrativa. É a partir da polifonia, da voz de outros, que vai-se delineando a história de vida e a personalidade da Joana Carolina.
·
Esses monólogos interiores, ao
misturar em “ziguezague o passado e o presente da protagonista”, conseguem dar
à figura de Joana Carolina “uma completude ficcional que só o romance de muitas
páginas, normalmente, conseguiria atingir” (Paes: 1994, p.202-3).
·
Ao final das contas, os fragmentos
proporcionados pelas vozes da narrativa permitem uma noção conjunta e coerente
desse ser; mas ainda assim essa noção é oscilante, aproximativa, descontínua.
·
Os seres são, por sua natureza,
misteriosos, inesperados. Esta constatação é fundamental para a verossimilhança
da narrativa e está presente em toda a literatura moderna; Osman Lins demonstra
estar ciente disso.
O PERFIL DE JOANA CAROLINA EM RETÁBULO:
Primeiro Mistério – (nascimento /
parteira)
Dizem dos filhos serem coisas plantadas, promessas de amparo, Com
todos esses, Totônia acabará na pobreza [...] Joana, apenas Joana Carolina,
apesar da pobreza, será seu arrimo...(p.153-4)
É uma mulher fiel. Em seu coração, jamais deverá ninguém. (p.154)
Segundo Mistério – (infância /
conhecido)
Joana carece de divertimentos. Não faz muitas semanas, descobriu
duas coisas que não custam dinheiro e lhe causam prazer: acompanhar enterros de
crianças; um ninho de escorpiões, no fundo do quintal. Pondo-os numa lata,
brinca com eles.(p.155)
Terceiro Mistério - (adolescência
/ marido)
Posso ver que os olhos de Joana são azuis e grandes; e que seu rosto
[...] difere de todos que encontrei, firme e delicado a um tempo. Adaga de cristal.
[...] Assim, na breve duração desse olhar, o primeiro que trocamos, e já
unindo-nos com tudo que isto implica, vejo apenas em Joana Carolina a
adolescente arrancada à imobilização e à cegueira por obra de milagre, para vir ao meu encontro com seus claros pés e descobrir-me. (p.156)
As alegrias serão quase nenhumas ante os sofrimentos, as depredações
em nossas vida, sobretudo na existência de Joana, minha vítima. (p. 156)
Quarto Mistério - (Juventude /
filho mais velho)
Por agora somos dois meninos, deitados em folhas de bananeira, nossa
mãe curvada sobre nós, atiçando o fogareiro com alfazema. [...] ... nossos
corpos ulcerados. Maria do Carmo, nossa única irmã, morreu há dois dias...
(p.157)
Nossa mãe, todos os dias, dar-lhe-á massagens com sebo de carneiro,
todos os dias, pacientemente, sem faltar um dia, até que ele poderá mover de
novo o braço, roubar comigo pássaros novos, e depois trabalhar, até que
levaremos nossa mãe, trar-lhe-emos um pouco da paz e da segurança que nosso
pai, sem jamais conseguir, quis dar-lhe. (p.158)
Quinto Mistério – (juventude /
Totônia)
... Desculpe, mas desde aquela hora imagino-a como esposa. Quero
protege-la!” “O senhor se engana, ela é que vai protegê-lo.” (p.158)
Tudo para viver esses dez anos, até morrer de repente... Devia ser
enterrado num caixão azul, feito os meninos pequenos. Tão bom que muitas vezes
maldei se Joana sentia mesmo prazer, prazer de mulher, em deitar-se com ele...
(p.159)
Ela não faz da dor um estandarte, guarda-a em segredo. Nos socavões
da alma. (p160)
Não é, da parte de Joana, para desesperar? Em vez disso, corta o pão
da merenda para os cinco filhos.
Sexto Mistério - (maturidade /
filho do dono da fazenda)
Joana, a professora, me afasta com régua e a palmatória na mão... o
outro braço protege os cinco filhos: Nô, o vivaz; Álvaro, o inteligente;
Teófanes, o conformado; Laura, a concentrada; Maria do Carmo, a segunda com
esse nome, e que também há de morrer criança. (p.162)
Vinha, de dentro dela, uma serenidade como a que descobrimos nas
imagens de santo, as mais grosseiras. Um som de eternidade. Tenho a consciência
tranqüila: para deitar-me com ela, fiz o que se pode. ... Ela possuía um
anteparo que tive de vencer aos poucos, um resguardo invisível, de compostura e
silencia, um zimbório de força, realeza. Olhava-me de frente, com seus olhos
azuis, severos como os de um senhor. (p.162)
... era preciso acender um fogareiro para não morrer de frio. Aí,
duma só vez, adoeceram seus filhos, todos, a pequena morreu. Sua mãe, que de
tempos em tempos vinha lhe fazer uma visita, morreu também aí. Nada abalou a
mulher. Levei três anos e meio rondando aquela casa... prometendo mundos e
fundos, se queria amigar-se comigo. ... Fitou-me dentro dos olhos com seu olhar
severo. ... Decidi agarra-la de uma vez, queria ver em que ficava sua
altaneria. Dei por mim andando no canavial, como se eu ente invisível me
houvesse arrebatado. ... Assediei só para humilhá-la, para destruir seu
orgulho, nada consegui. É verdade que não lhe falei, nunca mais, em deitar-se
comigo. ... Joana Carolina foi minha transcendência, meu quinhão de espanto
numa vida tão pobre de mistério. (p.163-4)
Sétimo Mistério - (maturidade / a
filha, Laura)
As lágrimas saltavam dos cansados olhos de mamãe, moídos de fazer,
todos aqueles anos, toalhas de crochê à luz do candeeiro, para vender na
cidade. Só então confessou: “Eu tinha tanto medo de ir por essas sendas! [...]
Pela única vez em toda a sua vida, ergueu o punho... numa revolta breve contra
aquelas estrada cento e oitenta vezes percorridas.
Ouço-a dizer: “sete anos, sete meses e sete dias morei neste
inverno. Sete anos, sete meses e sete dias. Parece sentença escrita num livro.”
Ergueu a mão espalmada e passou-a diante da paisagem, com o mesmo gesto que
fazia ao quadro-negro, apagando o que já fora ensinado e aprendido. ... Mas
naquele instante, percebendo o fim de um ciclo e de um mundo, veio-me, do fundo
das lembranças, uma pena. (p.167-8)
Oitavo Mistério – (maturidade /
parteira)
“Por sua mãe você fez o que pôde e o que não pôde. Deus lhe abençoe.”
(p.170)
“Mas é uma lei minha, agir sempre como se o impossível não fosse.” (p.170)
... vida e gente, e talvez até Deus são bois-anjos, e que, de tudo,
temos de comer, com os mesmos dentes fracos, a parte de chifre, a parte de asa. (p.171)
Nono Mistério – (maturidade /
casal )
“Bem sei que o dinheiro tem valor. Porém maior é a misericórdia. De
que serve a um homem ter gado e plantações, se não é capaz de tirar, do próprio
coração, alguma grandeza?” (p.175)
“Na verdade, havendo-me consagrado a meu esposo pela vida inteira, a
ele permaneço fiel. Assim, muito me honra a sua proposta, amável e generosa.
Ela significa, se eu a aceitasse, amparo e estabilidade pelo resto dos meus
dias. Mas, então, o que seria de minha alma?”
(p.176)
Décimo Mistério – (velhice /
parteira)
Em Joana esse caranguejo estendeu de uma vez as suas patas. ...
levou Nô e Álvaro, mortos antes da mãe... Mas Laura e Teófanes, casados,
moravam perto e amparavam-na. ... (p.177)
Joana, com o que lhe restara, contentava-se. Admitia haver bastante
sofrido, acrescentando, com resignação, que a muita vida corresponde sempre
muita pena e ser um desrespeito chorar, sobre o que temos de bom, o que
perdemos. (p.178)
(O milagre) Foram quatro tiros, distando mais ou menos um palmo
entre si, exatamente na altura em que estaria o menino, se não fosse a
interferência de Joana. (p.179)
Décimo Primeiro Mistério – (a
morte / padre)
Padre: tentei, minha vida inteira, viver na justiça. Terei
conseguido? [...] Quem muito fala, muito erra. A gente pode evitar de falar;
mas não de viver. Vivi oitenta e seis anos.
Padre, muitas vezes desejei matar.
Também devo ter feito injustiças. Devo ter feito. Já não me lembro
quase de nada. Nem do mal que fiz, nem do que sofri. Tudo agora é quase de uma
cor.
Tenho medo, padre (p.180)
Então, através das rugas... eu a vi em sua juventude. ... brilhava a
face de Joana aos vinte e poucos, com uma flama, um arrebatamento e uma nobreza
que pareciam desafiar a vida e suas garras. (p.180)
Foi sobre os olhos, a boca, os ouvidos, o nariz arqueado de anciã,
que invoquei a misericórdia de Deus... não senti na alma o peso da velhice e da
morte.
Resplandecia, no âmago desses fenômenos, uma frase, uma palavra, um
semblante, alguma coisa de completo e ao mesmo tempo de velado, como deve ser
para um artista a forma anunciada, pressentida, ainda irrevelada, ainda
inconquistada. (p.181)
Mistério Final – (nós)
Viveu seus anos com mansidão e justiça, humildade e firmeza, amor e
comiseração. Morreu com mínimos bens e reduzidos amigos. Nunca de nunca a
rapinagem alheia liberou ambições em seu espírito. Nunca o mal sofrido gerou em
sua alma outras maldades. Morreu no fim do inverno. (p.184)
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Ana Luiza. Osman Lins: crítica e criação. São Paulo:
Hucitec, 1987.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São
Paulo: Cultrix, 1994.
CÂNDIDO, Antônio e outros. A personagem de ficção. São Paulo:
Perspectiva, 1987.
GAMA, Rinaldo. “Metáfora estrutural de Osman Lins alça novo vôo”.
In: Entre Livros. São Paulo, Ediouro – Duetto, no.1, ISSN 1808-1010,
2006.
LINS, Osman. “Retábulo de Santa Joana Carolina”. In: BOSI, Alfredo -
Org. O Conto Brasileiro Contemporâneo.
São Paulo: Cultrix 1975 – 14ª ed., 2002
NITRINI, Sandra. Poética em confronto. São Paulo: Brasília: Hucitec, INL, 1987.
PAES, José Paulo. “Palavra feita vida”. In: LINS, Osman. Nove,
novena: posfácio. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
SOARES, Cláudia Campos. Grandes problemas de gente pequena: os
conflitos em
Miguilim. Palestra proferida no curso de Literatura Comparada da UFMG,
em 9.11.2007.
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