quarta-feira, 10 de julho de 2013

O ESTILO EM MACHADO DE ASSIS



Raquel Teles Yehezkel








O ESTILO EM MACHADO DE ASSIS





Trabalho requisitado pela disciplina Estudos sobre Estilo, ministrada pela professora doutora Ana Maria Clark Peres.                                                                               







Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 10 de novembro de 2006

O ESTILO EM MACHADO DE ASSIS
Raquel Teles Yehezkel

O objetivo deste trabalho é uma pequena análise sobre o estilo em Machado de Assis. Para fazer essa abordagem foram escolhidos três contos do autor, a saber: “A Cantiga dos Esponsais”, “Um Homem Célebre” e “O Cônego ou a Metafísica do Estilo”. A motivação que me levou a escolher estes contos foi a reflexão que eles contêm sobre o processo criativo de autor. “A Cantiga dos Esponsais” e “Um Homem Célebre” discorrem sobre o processo criativo musical; o primeiro aborda a questão da impossibilidade de expressão de um grande maestro, o segundo sobre a produção medíocre de um compositor famoso que se sabe capaz de muito mais. “O Cônego ou a Metafísica do Estilo” refletem sobre o processo criativo de um cônego escritor. Dessa forma, apesar de sob ângulos diferentes, os três giram em torno do mesmo tema.

Pareceu-me que a partir desses contos, poderia encontrar um fio que os perpassasse e que me conduziria ao estilo do autor. A perspectiva teórica pela qual pretendo abordar a questão do estilo em Machado – a mesma pela qual optei no trabalho apresentado anteriormente – foi-me oferecida pelos ensaios de Ana Maria Clark Peres e de Jésus Santiago, publicados no livro “O Estilo na Contemporaneidade”, mas nem um nem outro tem responsabilidade sobre a conclusão que deles depreendi e sobre a qual me deterei aqui para frente. Ou seja, a acepção de estilo que buscará na escritura as marcas que designarão o modo de gozo do autor; aquilo que o move a produzir. Acepção que toca, sim, na singularidade do autor, mas singularidade marcada na obra pelo seu prazer singular do autor ao cria-la, manifestação artística que traz à tona a capacidade de invenção do autor.

Tentarei sustentar que o estilo em Machado de Assis é marcado pela suspensão entre a busca da perfeição e a impossibilidade de alcançá-la plenamente. É na laboração de seu texto, na busca pela perfeição e na aflição da falta da mesma, que Machado encontra a sua fonte de prazer. Nos três contos apresentados, Machado deixa-nos entrever as satisfações e as aflições de seu fazer poético. O fio que conduz seu prazer de criar (ou de viver) parece ser a busca incansável pela perfeição; alvo que se mostra desde logo inatingível, nos três contos, mas, ainda assim, altamente desejável. Não que Machado busque uma obra inteiramente perfeita, sabe ser inviável, mas momentos de perfeição que a perpasse e que, em última instância, possam atingir o leitor.

Esta relação de busca e de atração se manifesta em seus textos em três planos distintos. O primeiro seria a atração produtiva entre o personagem/autor e as palavras que estão por vir – ou as notas musicais, nos dois primeiros contos. O segundo seria a busca da completude por meio de uma relação amorosa perfeita. E o último, a atração que relaciona a obra artística a seu público receptor. Em nenhum dos três contos a perfeição é atingida em sua plenitude, senão momentaneamente. 

Parece óbvio que para Machado não há obra sem receptores. A satisfação pode ser atingida, ainda que momentaneamente no próprio ato criativo, mas depende também do prazer que pode ou não despertar no leitor. Machado sabe que, na vida, não há relações perfeitas, assim como não há obra perfeita, e, dessa forma, sempre acaba deixando, de um modo ou de outro, alguma lacuna por onde possa escapar a última esperança de plenitude.

Vejamos, nas três histórias, a relação entre o autor, seu processo criativo, seus amores e os receptores de sua obra.

Em “Cantiga dos Esponsais”, mestre Romão tem imenso amor pela música (“rege a orquestra, com alma e devoção” p.386), que é capaz de causar-lhe profundas transformações (“Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro.” p.387), mas não consegue produzir nada de original (“Alguns papéis de música; nenhuma dele...” p.387. “Ah! Se mestre Romão pudesse seria um grande compositor.” p.387). Ao perceber que chegava ao fim da vida, o maestro “teve uma idéia singular: – rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra” (p.388), e pegou da gaveta o canto esponsálico que guardava desde 1779. Pensando na imortalidade, “– Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...” , juntou todas as forças que lhe restavam para chegar ao canto final. Enquanto tentava compor, “Pela janela viu (...) dous casadinhos de oito dias” (p.388), recém casados como ele e sua esposa, quando havia composto o início do canto, “debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas” (p.388). “Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...” (p.388). E descreve seu processo criativo: “Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos.” “Não precisa ser uma coisa original, mas enfim alguma cousa, que não fosse de outro...” (p.389). Como não conseguia atingir a nota desejada, “Desesperado, deixou o cravo, pegou o papel escrito e rasgou-o” (p.389). Nesse exato momento, o casal não só estava abraçado, mas também olhava um para o outro: “a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo” (p.389). “Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem sabida, na qual cousa um certo trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurava durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou” (p.389). O êxtase criativo foi facilitado pela catarse ao rasgar a partitura, desistindo da busca do canto perfeito e da própria vida, mas, principalmente, foi facilitado pelo olhar entre o casal. Esse instante de abandono de si mesmo e a incansável repetição do por parte de mestre Romão despertaram na jovem a música “nunca antes cantada nem sabida” (p.389). Este momento único, surgido na voz do outro (a jovem), possibilitado pelo olhar, seria o que Ricardo Piglia chamou de “deslocamento”: a capacidade do autor de condensar um sentido múltiplo em uma só cena, usando a voz do outro para expressar o indizível. Houve aí, no entretempo criado pelo deslocamento do centro (o maestro) para a periferia (a jovem vizinha), um encontro perfeito com a unicidade, um momento de epifania condensando criação e morte em uma mesma cena. Mas o momento escapa, e a obra perfeita, mesmo que realizada, não se completa, pois, como não foi registrada, não chegará ao público receptor, sinalizando a impossibilidade da completude.

As marcas do autor deixam-se revelar na satisfação do ato criativo, e atinge seu ápice no gozo, no casamento perfeito, no encontro com o outro, na identificação do outro com sua obra. Não é à toa que em “Cantiga dos Esponsais”, a música do mestre se completa com a nota dada pela outra; pela outra que sentiu-se tocada pela pelas notas preliminares que ele escreveu. Ela foi tocada por ele, e no momento em que se perdeu no olhar de seu amor, embebida nas notas do mestre, completou-se a obra. A obra apenas se realizou totalmente no encontro com o receptor. Até então ela estava incompleta.

Quanto ao conto “Um Homem Célebre”, parece que Pestana, personagem principal, pode ser encarado como a metáfora do próprio Machado de Assis. Pestana, assim como Machado, era um artista consagrado pelo público, “famoso autor de tantas polcas amadas” (p.498). Pestana, diferentemente de seu público, considerava sua produção medíocre e efêmera. Desejava compor grandes obras como a dos compositores clássicos, dos quais ostentava uma galeria de retratos na parede, “postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho (...) aberto: era uma sonata de Beethoven” (p.498). A criação artística para fins de consumo ordinário – “a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia” (p.498) –, causava-lhe frustração: “Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?” (p.499). “Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se” (p.498). “Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar” (p.498).

Como Machado, Pestana possuía agilidade para criar; o fazer poético vinha-lhe com facilidade: “De repente” o clic: “uma inspiração real e pronta, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios” (...) “dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo.” “Compunha só, teclando ou escrevendo (...), sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.” “Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos quando voltou para jantar: mas já cantarolava, andando na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação” (p.498).

Percebe-se a satisfação de Pestana consigo mesmo, com a sua desenvoltura e domínio sobre o ato criativo. Gosta do que faz e se reconhece no que produz, ainda que logo, ao olhar a galeria de celebridades na parede, suba-lhe à cabeça o senso crítico e julgue sua produção medíocre: “A obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias estava célebre. Pestana, durante os primeiros dias, andou deveras enamorado da composição (...). Não desgostou também de a ouvir assobiada... Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. (...) E aí voltaram as náuseas de si mesmo” (p.500).

De tempos em tempos, seu editor encomendava-lhe uma nova polca, “os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa” (p.500). Questionado sobre o que significava a última daquelas sugestões, o editor respondeu: “Não quer dizer nada, mas populariza-se logo” (p.500).

Insatisfeito com o rumo de sua vida, Pestana busca no casamento a inspiração de que necessitava – “Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias” (p.502) –,  mas essa era uma união fadada ao fracasso, pois a moça era tísica “Recebeu-a como a esposa espiritual de seu gênio. O celibato era, sem dúvida, causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo. (...) tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas”. O casamento trouxe-lhe felicidade, e “a felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração” (p.502), mas não mudou sua produção artística: “Para que lutar? Vou com as polcas... Viva a polca!” dizia, tentando convencer a si mesmo. “...eterna peteca entre a ambição e a vocação...” (p.502). Vê-se que Pestana reconhece a sua vocação, mas não se conforma em não deixar uma composição que seja imortal.

Com a morte da esposa, Pestana volta a perseguir o sonho de criar uma obra perfeita, mas com o futuro já marcado pela frustração e impossibilidade de seguir a carreira: “o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música (...) que faria executar no primeiro aniversário de morte de Maria.” Depois, “Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda” (p.502). “Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. (...) A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído” (p.503). Na missa de um ano da esposa “Não se pode dizer se todas as lágrimas (...) foram do marido, ou se algumas eram do compositor” (p.503) que não concluíra a obra.

Permaneceu frustrado e improdutivo durante dois anos, até que aceitou a encomenda de “vinte polcas durante doze meses”. E, “Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial” (p.503). Finalmente, reconhecendo que jamais comporia a obra que julgava perfeita, deleitava-se no encontro com a música de outros: “Já agora, (...) sempre que havia uma boa ópera, (...) metia-se a um canto, gozando aquela porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro” (p.503). “A fama de Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polca; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César” (p.504), mas, ao menos, agora regia de forma diferente ante a sua produção: “Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio”. Com o passar do tempo, Pestana adoece, e, como o mestre Romão de Cantigas dos Esponsais, prevê o seu fim, mas, diferentemente deste, não finaliza sua grande obra, apenas diz a seu editor: “como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas...” O narrador parece fazer uma crítica quanto ao fato de Pestana ter vivido uma vida sem gozo: “Foi a única pilhéria que disse em toda a sua vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte (...); bem com os homens e mal consigo mesmo” (p.504).

Para fechar minhas ponderações alucinadas sobre o estilo em Machado de Assis, não poderia escolher senão “O Cônego ou a Metafísica do Estilo”. Machado, ou o Cônego, em seu ato de criar, como no processo da “Criação” bíblica, pede o verbo, ou seja, a palavra; e não por acaso invoca partes do “Cânticos dos Cânticos”, versos bíblicos assim chamados por serem considerados os mais belos entre todos os cânticos atribuídos ao rei Salomão, que clamam pelo casamento perfeito entre Deus e o homem: “Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem...” “Se encontrar o meu amor (o receptor), diga-lhe que estou a sua espera”. “Escutai, ao longe parece que suspira também alguma pessoa (o receptor)” (p. 571). “Sílvio (o substantivo) não pede um amor qualquer (p.571)”, pede Sílvia, o adjetivo, a musa inspiradora; “um certo amor nomeado e predestinado” (p.571). “Sílvio vai andando em à procura da única” (p.571), “a destinada para ab eterno para este consórcio” (p.571). “Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas redimidos com a paga.” (...) “Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu manto?” (...) Responde-lhe que “é o selo do seu coração”, e que “o amor é tão valente como a própria morte” p.573 (novamente amor e morte se condensam). “Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe (o êxtase). A pena, cheia de comoção e respeito, completa o substantivo com o adjetivo. (...) irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe” (p.573). Novamente, após a epifania do êxtase, abrem-se possibilidades do discurso do Cônego ir ou não para o prelo, ou seja, não se sabe se este momento perfeito se completará no encontro da obra com seu receptor.

Finalmente, ao ler “O Cônego ou a Metafísica do Estilo”, imediatamente impõe-se a seguinte questão: qual seria razão de constar no título a expressão “metafísica do estilo”? Se pegarmos a acepção do termo metafísica como “a chave do conhecimento do real, tal como este verdadeiramente é” (AURÉLIO), podemos pensar que Machado estaria dando ao leitor a chave do que é o estilo, ou, pelo menos, a chave do que ele julga ser o estilo. O que poderia nos fazer supor que este conto nos revelaria o seu modo de criação, ou melhor, o seu estilo singular. De forma bem resumida, parece que este conto não deixa dúvidas de que, pelo menos para Machado de Assis, o estilo seria, no fazer poético, a busca do casamento perfeito entre as palavras. Mas Machado, produtor de tantas obras, mesmo que admirado e reconhecido pelo público, parece ter consciência de que não há obra perfeita e que a unicidade é inaprensível, tanto é que a sensação de frustração acompanha toda a sua obra. Parece também saber que o sucesso passa pelo modo singular do fazer poético de cada autor e que esse fazer poético oscila entre a inspiração e o labor de um texto lapidado. Parece consciente do processo criativo como um todo, desde a relação cuidadosa com as palavras até à relação sofisticada com leitor. A preocupação com o fazer poético transparece em toda sua obra.

A partir desde ponto, passo a levantar meras conjeturas sobre o estilo em Machado de Assis, pois, ao trabalhar com textos requintados como esses três contos aqui citados, seria pretensioso afirmar ter encontrado marcas que desvendariam o estilo de Machado, mas talvez uma delas tenha se revelado a mim de forma mais óbvia: a busca pela perfeição. Esta marca comportaria muitas outras mencionadas em nosso curso: a busca do casamento perfeito entre as palavras, nas relações afetivas ou na relação com o leitor. Essa busca pela perfeição poderia ter, por parte do autor, um objetivo mais ambicioso como, por exemplo, a permanência de sua obra. A atração entre autor, palavras e leitor é tamanha, que os entrelaçariam de tal forma, que possibilitariam uma sobrevida do texto machadiano. De onde seria possível deduzir que, quanto mais o autor se aproximasse da perfeição textual, mais o leitor se sentiria atraído por ele. O clímax, o momento de unicidade, seria também o momento de unicidade entre autor e leitor.

Nesta análise da busca do texto perfeito, o prazer contido no próprio ato de realização da obra, é, em primeira instância, o que moveria o criador. O desejo de bonheur, de satisfação, que acompanharia todo ato criativo, onde inspiração e labor – como busca e esforço –, se fundem quase que na perda ou no esquecimento absoluto de si mesmo. Machado deixa claro que esta relação de amor, de atração incontrolável, comparada ao ato sexual, é inseparável do processo criativo. Deixa claro também que é esta mesma atração que impulsiona a busca da unicidade, da perfeição, que seria capaz de despertar no leitor a mesma sensação que o criador teve ao produzi-lo. Se o autor fizé-lo bem, Machado deixa crer que o leitor o receberá na mesma medida. Estaria aí o casamento com o leitor. E é desde casamento com o outro, do reconhecimento do outro em sua própria obra, que viria o reconhecimento do público. E seria este processo de identificação do público com a obra criada, que conduziria a obra à imortalidade. Mas isto somente aconteceria se o criador chegasse ao êxtase criativo, à unicidade, à completude, pois só assim ele seria capaz de conduzir o público pelo mesmo caminho que percorrera.

Mas, nem o gozo do autor em seu processo de criação nem o do leitor em sua recepção são capazes de garantir a imortalidade do texto. Machado tinha plena consciência de que a imortalidade da obra dependia do casamento entre o autor e o público receptor. E para que este casamento garantisse a imortalidade, a obra deveria atingir também o público do porvir. Portanto, somente a perfeição garantiria a permanência da obra no tempo. Apenas a obra que, em seu tempo, tanger a perfeição poderá aspirar à imortalidade. E a única aproximação da perfeição, da unicidade, seriam os momentos de orgasmo, ou o momento da morte, a beira do abismo, a perda do controle de si mesmo, em que se mergulha em uma outra dimensão, no outro, na relação com o outro. Estes instantes, de alguma forma, estariam inscritos na obra. A busca por momentos de ápice, de clímax, de êxtase, como se queira, seria o objetivo tanto dos criadores quanto dos receptores. Seria o momento onde se realizaria o casamento e a promessa de sua ressonância na eternidade; em última instância, talvez fosse também o objetivo de Machado.


REFERÊNCIAS

MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
PERES, Ana Maria Clark. Machado de Assis, Dom Casmurro. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.81-96.
________. Questões de estilo. in: Questões de literatura. São Paulo: UPE, 2003. p. 95-101.
SANTIAGO, Jésus. Inconsciente e sintonia: uma questão para os usos da prática da letra. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.225-232.
MELAMED, Meir Matzliah: trad. Tora, a Lei de Moisés. São Paulo: Sêfer, 2004, p.647.

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