Raquel Teles Yehezkel
Rogéria Rodrigues Ferreira
A
SUBJETIVIDADE NA LÍNGUA
O FAZER POÉTICO E A CRIAÇÃO LINGUÍSTICA
DE
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE EM “A MESA”
Trabalho final, requisito da disciplina
Semântica do Português, ministrada pelo professor doutor WanderEmediato
Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 30 de Junho de 2006
Introdução
Escolhemos como ponto de partida para este estudo semântico o poema
de Carlos Drummond de Andrade, “A mesa”, pois sua montagem é uma criação
poética em que o autor, com o intuito de recriar a mesa da casa de seus pais,
utiliza todos os recursos lingüísticos e todas as dimensões da subjetividade
(termos cotextuais, contextuais, axiológicos e polifônicos) no ato da
enunciação. Fica muito claro, através das duas citações abaixo, a produção da
enunciação de Drummond, que busca na língua, as palavras com as quais constrói
seu discurso: o poema, dirigido ao leitor:
O ato individual pelo qual se
utiliza a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas
condições necessárias da enunciação. Antes da enunciação, a língua não é senão
possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma
instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte
e que suscita uma outra enunciação de retorno.(Benvenistes, 1988: 81,81).
Enunciador e enunciatário
correspondem ao autor e leitor implícitos ou abstratos, ou seja, à imagem do
autor e à do leitor construídas na obra. O enunciatário, como filtro e instância
pressuposta no ato de enunciar, é também sujeito produtor do discurso, pois o
enunciador, ao produzir um enunciado, leva em conta o enunciatário a quem ele
se dirige. (Fiorin, 2003: 163).
Segundo Fiorin, “a enunciação
é o ato produtor do enunciado, são as realizações lingüísticas concretas”
(2003: 162), ou seja, é o próprio ato da criação do discurso. Para Benveniste
“é a colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização”
(1974: 3). O fazer poético de Drummond em “A mesa” é um bom exemplo de
“realização lingüística concreta” “por um ato individual de utilização” na
escrita. A partir dele, levantaremos conceitos, exemplos e problemas sobre a
subjetividade na língua, centrando especificamente nas questões axiológicas
(subjetivemas), polifônicas, dêiticas (contextualizadoras) e anafóricas
(cotextualizadoras).
Dentro do conceito de axiologização, podemos dizer que toda
unidade lexical é, em certo sentido, subjetiva, pois as palavras são símbolos
substitutivos e interpretativos das coisas.Diante da enunciação, o sujeito
necessita verbalizar sobre algo referencial, real ou imaginário, e deverá
selecionar entre dois tipos de formulação: o discurso objetivo que tenta
dissimular os traços de um enunciador individual e o discurso subjetivo,
no qual o enunciador se expressa explicitamente ou se coloca implicitamente
como a fonte avaliativa da asserção.
A polifonia enunciativa quebra a unicidade do sujeito, diz
respeito à pluralidade, pois percebemos mais de um sujeito no enunciado. A ironia
é uma polifonia moderada: dois enunciadores, onde um parece assumir
o que diz e outro que não assume (o mais importante) e que corresponde à
intenção do locutor. A polifonia radical afirma que todo enunciado é
polifônico, pois tudo o que o sujeito diz inclui o outro, toda construção é
imersa na alteridade.
Segundo Mattoso, dêixis é a faculdade que tem a linguagem de
designar mostrando, em vez de conceituar. A designação dêitica, ou mostrativa,
figura assim ao lado da designação simbólica ou conceptual em qualquer sistema
lingüístico (1970: 133). São dêiticos os pronomes pessoais que indicam os
participantes da enunciação, eu/tu; os marcadores de espaço, como os
advérbios de lugar e os pronomes demonstrativos (por exemplo, aqui, lá,
este, esse, aquele), os marcadores de tempo (por exemplo, agora, hoje,
ontem).
Para Mattoso, a anáfora é qualquer referência a um termo já
constante no contexto. Há anáfora, em vez de dêixis, no uso dos
pronomes, quando, em vez de uma indicação no espaço, há uma referência ao
contexto. Assim os demonstrativos, ao lado do seu emprego dêitico, têm outro,
anafórico (1970: 65).
As categorias de “pessoa”, de “espaço” e de “tempo” são
constutivas do ato de produção do enunciado em qualquer língua. O eu-poético
dirige seu discurso ao pai, o qual escolhe tratar pelo pronome “tu”. Segundo
Fiorin a categoria de pessoa é essencial para que a linguagem se torne
discurso. Espaço e tempo estão na dependência do “eu”, já que a pessoa enuncia
num dado espaço e num determinado tempo. “Aqui” é o espaço do “eu” e o “agora”
é o momento da enunciação. A partir do “aqui” e do “agora” organizam-se todas
as relações espaciais e temporais do discurso (2003: 163).
Ainda segundo Fiorin, “o tempo do
discurso é sempre uma criação da linguagem” (2003: 163); para Benveniste “o
tempo lingüístico se difere do tempo cronológico e do tempo físico. Sua
singularidade é que ele está ligado ao exercício da fala, pois tem seu centro
no presente da instância da fala”(1974: 3), ou seja, do discurso. Em “A mesa”,
o tempo do poema está sempre suspenso entre passado e presente. O autor supera
a linearidade, pois passado e presente se condensam à mesa que de início
parecia vazia. Reúne mortos e vivos. O poeta brinca com as palavras: ora
constrói uma temporalidade e espacialidade endofóricas, oferecidas no próprio
texto pelo uso de termos remissivos (anáforas), ora traz o leitor ao presente
através do emprego de termos dêiticos que servem como “engatadores” temporais.
A escolha do pronome dêitico “tu” para dirigir-se ao pai realiza a atualização,
a presentificação do discurso. “Eu”, sujeito individual e locutor, e “tu”,
interlocutor, encontram-se no contexto, sempre em relação ao aqui e agora.
Em movimentos rápidos, o eu-poético faz “closes” em cada
um dos membros da família, criando também a poética da imagem: a mesa; que está
em todos os lugares (ubiqüidade) e que, ao longo do poema, se configura em pai,
mãe, irmãos, lugar de afeto, de desavenças; símbolo de julgamento psico-afetivo
dos valores do grupo que em torno dela se envolve (dimensão axiológica).
A MESA
Carlos Drummond de Andrade
E não gostavas de festa...
Ó velho, que festa grande
hoje te faria a gente.
E teus filhos que não bebem
e o que gosta de beber,
em torno da mesa larga,
largavam as tristes dietas,
esqueciam seus fricotes,
e tudo era farra honesta
acabando em confidência.
Ai, velho, ouvirias coisas
de arrepiar teus noventa.
E daí, não te assustávamos,
porque, com riso na boca,
e a nédia galinha, o vinho
português de boa pinta,
e mais o que alguém faria
de mil coisas naturais
e fartamente poria
em mil terrinas da China,
já logo te insinuávamos
que era tudo brincadeira.
Pois sim. teu olho cansado,
mas afeito a ler no campo
uma lonjura de léguas,
e na lonjura uma rês
perdida no azul azul,
entrava-nos alma adentro
e via essa lama podre
e com pesar nos fitava
e com ira amaldiçoava
e com doçura perdoava
(perdoar é rito de pais,
quando não seja de amantes).
E, pois, todo nos perdoando,
por dentro te regalavas
de ter filhos assim... puxa,
grandessíssimos safados,
me saíram bem melho
que as encomendas. de resto,
filho de peixe... calavas,
com agudo sobrecenho
interrogavas em ti
uma lembrança saudosa
e não de todo remota
e rindo por dentro e vendo
que lançaras uma ponte
dos passos loucos do avô
à incontinência dos netos,
sabendo que toda carne
aspira à degradação,
mas numa via de fogo
e sob um arco sexual,
tossias. Hem, hem, meninos,
não sejam bobos. Meninos?
Uns marmanjos cinquentões,
calvos, vividos, usados,
mas resguardando no peito
essa alvura de garoto,
essa fuga para o mato,
essa gula defendida
e o desejo muito simples
de pedir à mãe que cós,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada...
Ai, grande jantar mineiro
que seria esse... comíamos,
e comer abria fome,
e comida era pretexto.
E nem mesmo precisávamos
ter apetite, que as coisas
deixavam-se espostejar,
e amanhã é que eram elas.
Nunca desdenhe o tatu.
Vá lá mais um torresminho.
E quanto ao peru? farofa
há de ser acompanhada
de uam boa cachacinha,
não desfazendo em cerveja,
essa grande camarada.
Ind’outro dia... comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?
Beber é pois tão sagrado
que só bebido meu mano
me desata seu queixume,
abrindo-me sua palma?
Sorver, papar: que comida
mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe,
e que bebida mais santa
que a todos nos une em um
tal centímano glutão,
parlapatão e bonzão!
E nem falta a irmã que foi
mais cedo que os outros e era
rosa de nome e nascera
em dia tal como o de hoje
para enfeitar tua data.
Seu nome sabe a camélia,
e sendo uma rosa-amélia,
flor muito mais delicada
que qualquer das rosas-rosa,
viveu bem mais do que o nome,
porém no íntimo claustrava
a rosa esparsa. a teu lado,
vê: recobrou-selhe o viço.
Aqui sentou-se o mais velho.
Tipo do manso, do sonso,
não servia para padre,
amava casos bandalhos;
depois o tempo fez dele
o que faz de qualquer um;
e à medida que envelhece,
vai estranhamente sendo
retrato teu sem ser tu,
de sorte que se o diviso
de repente, sem anúncio,
és tu que me reapareces
noutro velho de sessenta.
Este outro aqui é o doutor,
o bacharel da família,
mas suas letras mais doutas
são as escritas no sangue,
ou sobre a casca das árvores.
Sabe o nome da florzinha
e não esquece o da fruta
mais rara que se prepara
num casamento genético.
Mora nele a nostalgia,
citadino, do ar agreste,
e, camponês, do letrado.
Então vira patriarca.
Mais adiante vês aquele
que de ti herdou a dura
vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Achou não valer a pena
reproduzir sobre a terra
o que a terra engolirá.
Amou. e ama. e amará.
Só não quer que seu amor
seja uma prisão de dois,
um contrato, entre bocejos
e quatro pés de chinelo.
Feroz a um breve contacto.
à segunda visa, seco,
à terceira vista, lhano,
Dir-se-ia que ele tem medo
de ser, fatalmente, humano.
dir-se-ia que ele tem raiva,
mas que mel transcende a raiva,
e que sábios, ardilosos
recursos de se enganar
quanto a si mesmo: exercita
uma força que não sabe
chamar-se, apenas, bondade.
Esta calou-se. não quis
manter com palavras novas
o colóquio subterrâneo
que num sussurro percorre
a gente mais desatada.
Calou-se, não te aborreças.
Se tanto assim a querias.
algo nela ainda te quer,
à maneira atravessada
que é própria de nosso jeito.
(Não ser feliz tudo explica.)
Bem sei como são penosos
esses lances de família,
e discutir neste instante
seria matar a festa,
matando-te – não se morre
uma só vez, nem de vez.
Restam sempre muitas vidas
para serem consumidas
na razão dos desencontros
de nossos sangues nos corpos
por onde vai dividido.
Ficam sempre muitas mortes
para serem longamente
reencarnadas noutro morto.
Mas estamos todos vivos.
E mais que vivos, alegres.
Estamos todos como éramos
antes de ser, e ninguém
dirá que ficou faltando
algum dos teus. por exemplo:
ali ao canto da mesa,
não por humilde, talvez
por ser o rei dos vaidosos
e se pelar por incômodas
posições de tipo gauche,
ali me vês tu. que tal?
Fica tranqüilo: trabalho.
Afinal, a boa vida
ficou apenas: a vida
(e nem era assim tão boa
e nem se fez muito má).
Pois ele sou eu. repara:
tenho todos os defeitos
que não farejei em ti,
e nem os tenho que tinhas,
quanto mais as qualidades.
Não importa: sou teu filho
com ser uma negativa
maneira de te afirmar.
Lá que brigamos, brigamos,
opa! que não foi brinquedo,
mas os caminhos do amor,
só amor sabe trilhá-los.
Tão ralo prazer te dei,
nenhum, talvez... ou senão,
esperança de prazer,
é, pode ser que te desse
a neutra satisfação
de alguém sentir que seu filho,
de tão inútil, seria
sequer um sujeito ruim.
Não sou um sujeito ruim.
Descansa, se o suspeitavas,
mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
o meu coração chateado.
Se me chateio? demais.
Esse é meu mal. não herdei
de ti essa balda. bem,
não me olhes tão longo tempo,
que á muitos a ver ainda.
Há oito. e todos minúsculos,
todos frustrados. que flora
mais triste fomos achar
para ornamento de mesa!
Qual nada. de tão remotos,
de tãa puros e esquecidos
ao chão que suga e transforma,
São anjos. que luminosos!
que raios de amor radiam,
e em meio a vagos cristais
o cristal deles retine,
reverbera a própria sombra.
São anjos que se dignaram
participar do banquete,
alisar o tamborete,
viver vida de menino.
são anjos; e mal sabias
que um mortal devolve a deus
algo de sua divina
substância aérea e sensível,
se tem um filho e se o perde.
Conta: quatorze na mas.
Ou trinta? serão cinqüenta,
que sei? se chegam mais outros,
uma carne cada dia
multiplicada, cruzada
a outras carnes de amor.
São cinqüenta pecadores,
se pecado é ter nascido
e provar, entre pecados,
os que nos foram legados.
a procissão de teus netos,
alongando-se em bisnetos,
veio pedir tua benção
e comer de teu jantar.
Repara um pouquinho nesta,
no queixo, no olhar, no gesto,
e na consciência profunda
e na graça menineira,
e dize, depois de tudo,
se não é, entre meus erros,
uma imprevista verdade.
Esta é minha explicação,
meu verso melhor ou único,
meu tudo enchdo meu nada.
Agora a mesa repleta
está maior do que a casa.
Falamos de boca cheia,
xingamo-nos mutuamente,
rimos, ai, de arrebentar,
esquecemos o respeito
terrível, inibidor,
e toda a alegria nossa,
ressecada em tantos negros
bródios comemorativos
(não convém lembrar agora)
os gestos acumulados
de efusão fraterna, atados
(não convém lembrar agora),
as fina-e-meigas palavras
que ditas naquele tempo
teriam mudado a vida
(não convém mudar agora)
vem tudo à mesa e se espalha
qual inédita vitualha.
Oh que ceia mais celeste
e que gozo mais do chão!
Quem preparou? que inconteste
vocação de sacrifício
pôs a mesa, teve os filhos?
que se apagou? quem pagou
a pena deste trabalho?
quem foi a mão invisível
que traçou este arabesco
de flor em torno ao pudim,
como se traça uma auréola?
quem tem auréola? quem não
a tem, pois que, sendo de ouro,
cuida logo em reparti-la,
e se pensa melhor faz?
quem senta do lado esquerdo,
assim curvada? que branca,
tarja de cabelos brancos
retira a cor das laranjas,
anula o pó do café,
cassa o brilho aos serafins?
quem é toda luz e é branca?
Decerto não pressentias
como o branco pode ser
uma tinta mais diversa
da mesma brancura... alvura
elaborada na ausência
de ti, mas ficou perfeita,
concreta, fria, luna.
Como pode nossa festa
ser de um só que não de dois?
Os dois ora estais reunidos
numa aliança bem maior
que o simples elo da terra.
Estais juntos nesta mesa
de madeira mais de lei
que qualquer lei da república.
Estais acima de nós,
acima deste jantar
para o qual vos convocamos
por muito – enfim – vos queremos
e, amando, nos iludirmos
junto da mesa
vazia.
O poema pode ser dividido em três partes.
I Parte: A fala do filho ao pai descrevendo o grande jantar mineiro
Ambigüidade temporal –
Suspensão entre passado e presente. O pai não está presente; a ação está
ocorrendo no passado, mas o filho está se dirigindo ao pai no presente. Num só
tempo, num só espaço o autor cria ausência e presença, personagens estão e não
estão; passado e presente, fluxo e refluxo anafórico e dêitico.
E não gostavas de festa... (v. 1)
E Þ o poeta escolhe iniciar o poema com a conjunção “e” que ali exerce
função anafórica, ligando o passado ao presente. Mesmo aparecendo pela primeira
vez, sem nos remeter a um termo anterior, o “e” serve como “condutor, conector”
do leitor ao passado, como se ele já soubesse de coisas anteriores, criando uma
cumplicidade entre o eu-poético e o leitor.
gostavas e ... Þ o verbo no passado imperfeito e as reticências no final do primeiro
verso colaboram, desde o início do poema, para a suspensão entre o passado e o
presente.
Ó velho, que
festa grande / hoje te faria a gente (v.2-3) - faria: fato
irreal do presente (futuro do pretérito); Ó velho: vocativo,
presentificação do pai.
Emprego de formas verbais
dêiticas: fazias, gostavas. Ai, velho, ouvirias coisas.
Descrição do jantar mineiro através da introdução das personagens na
cena da mesa com o largo emprego de termos axiológicos (de valores subjetivos /
subjetivemas).
Os irmãos: E teus filhos que não bebem /
e o que gosta de beber, em torno da mesa larga, / largavam as tristes
dietas, / esqueciam seus fricotes, e tudo era farra honesta / acabando
em confidência (v. 4-10) – apenas um gosta de beber: determinante “o”
aponta para “aquele” que gosta de beber. Subjetivemas avaliativos: gostar de
beber, mesa (larga), (farra) honesta.
E daí, não assustávamos / (v. 17) – o autor, que estava falando dos irmãos na 3a
pessoa do plural, inclui-se no discurso e passa a falar na 2a do
plural.
O pai: porque, com riso na boca, / e a
nédia galinha, o vinho português de boa pinta, / (v.13-16) – subjetivemas:
nédia (galinha), (vinho português de) boa pinta.
A mãe: e mais o que alguém faria / de mil
coisas naturais / e fartamente poria / em mil terrinas da China, / (v.
18-20).
O pai: Teu olho cansado, / mas afeito a
ler no campo / uma lonjura de léguas / e na lonjura uma rês / perdida no azul
azul, / entrava-nos alma adentro / (v. 23-28) - uso de subjetivemas: (olho)
cansado; (azul) azul;
A mãe: E o desejo muito simples / de
pedir à mãe que cosa, / mais do que nossa camisa, nossa alma frouxa, rasgada...
/ (v.62-65) – subjetivemas: (nossa alma) frouxa, rasgada.
Rindo por dentro e vendo / que lançaras uma ponte / dos passos
loucos do avô à incontinência dos netos / (v.
46-49) – “ponte” lançada no tempo pelo velho pai que via, nele mesmo, no
presente, a imagem do pai dele outrora, e, nos filhos, o menino que um dia
fora.
Ironia: Hem, hem, meninos, / não sejam bobos. Meninos? / Uns
marmanjos cinqüentões, / calvos, vividos, usados, / mas resguardando no peito /
essa alvura de garoto/ (v. 54-59).
II Parte - Deslocamento para o presente: o jantar está à mesa.
O autor vai deslocando a cena do passado para o
presente.
E nem mesmo precisávamos / ter apetite, que as coisas / deixavam-se
espostejar / e amanhã é que eram elas (v.
70-73) – ao utilizar o “localizador temporal” amanhã, o eu-poético desloca o
discurso do passado para o presente, pois “amanhã” existe em relação à “hoje”.
E passa a descrever a festa.
Instalação do presente: o banquete - Nunca
desdenhe o tutu. / Vá lá mais um torresminho. / E quanto a farofa? (v.
74-73).
A comunicação e o afeto represados pareciam apontar para a euforia,
mas o discurso torna-se disfórico ao apresentar cada um dos 7 irmãos:
- “a rosa-amélia” que no íntimo claustrava a rosa esparsa – subjetivemas: claustrava, esparsa, amélia (v. 107-108);
- Aqui sentou-se o mais velho / tipo do manso, do sonso, / não servia para padre, / amava casos bandalhos (v. 110) – aqui: dêitico, advérbio de lugar, designa a relação de proximidade espacial do sujeito enunciador. Subjetivemas: manso, sonso, bandalhos;
- Este aqui é o doutor, / o bacharel da família (v. 123-124) – este aqui: dêiticos demonstrativos, relação de proximidade do sujeito. Subjetivemas avaliativos: o doutor, o bacharel (julgamento de valor).
- Mais adiante vês aquele / que de ti herdou a dura / vontade, o duro estoicismo. Mas, não quis te repetir (v. 135-139) – dêiticos: adiante, aquele.
- Esta calou-se (v. 158). Calou-se, não te aborreças. / Se tanto assim a querias, algo nela ainda te quer, / (v.164-167).
- Ficam sempre muitas mortes / para serem longamente encarnadas noutro morto. Mas estamos todos vivos. E mais que vivos alegres. / Estamos todos como éramos antes de ser, e ninguém dirá que ficou faltando / algum dos teus (v. 181-189). –como estavam como eram “antes de ser” - quer dizer, no passado - não faltava ninguém.
- Ali me vês tu. Que tal? (v. 195). – Dêitico: ali, tu.
- Há oito. E todos minúsculos, / todos frustrados. Que flora / mais triste fomos achar / para ornamento da mesa! / Qual nada. De tão remotos, / de tão puros e esquecidos / no chão que suga e transforma, / são anjos. Que luminosos! (v. 132-239) – Polifonia: existência de duas vozes que se contradizem.
III Parte – A mesa: Libação e desfecho
Nesta parte, a mesa assume posição central: larga,
enorme, grande (sustentação da ambigüidade), como metáfora aglutinadora e
confessionária. A exuberância da mesa vai matando a disforia, quebrando as
barreiras quase intransponíveis. Abre-se, então, o corredor semântico do prazer
oral e do afeto. A mesa (a comida) exerce a função simbólica de catalizador que
desata os laços de efusão fraterna, fazendo fluir a conversa e provocando o
delírio afetivo num crescendo oral x afeto.
Repara um pouquinho nesta /no queixo, no olhar, no
gesto (v. 267-268). Esta é minha explicação, /
meu verso melhor ou único, meu tudo enchendo meu nada (v. 274-276). – Ponto
de passagem dêitica, a filha, da disforia para a euforia.
Quem preparou? que inconteste / vocação de sacrifício
/ pôs a mesa, teve os filhos? Quem se apagou? quem pagou / a pena deste
trabalho (v. 299-303)? – Por meio do jogo de
palavras (apagou / pagou) ocorre a transformação mágica: a mãe põe a mesa (a
comida) e o afeto. A mesa é a própria mãe – continente provedor de comida e
afeto, onde tudo se encontra: mãe e mesa; céu e terra; passado e presente.
Só então, ao resgatar a figura da mãe, fecha-se o
enigma. A mesa está acima de tudo e de todos, acima do real, mas a chave não é
o espaço/mesa, mas a junção dos dois: pai e mãe. Estais acima de nós, /
acima deste jantar / para o qual vos convocamos / por muito – enfim –
vos querermos e, amando, nos iludirmos / junto da mesa / vazia. – Enfim: conclusivo;
sensação de alívio de, mesmo que momentaneamente, tê-los juntos em volta da
mesa... ainda que “agora” vazia.
A função poética é a função criadora, o lugar da criação lingüística é
a poesia. A poesia é a plenitude da linguagem.
Conclusão
Todos os
mecanismos acima expostos produzem efeitos de sentido no discurso, reforçando a
noção de subjetividade da língua e suas nuances de interpretações ao
atentar-se, na análise semântica-discursiva, à polifonia, à axiologia
(avaliativa, afetiva), aos termos cotextuais e contextuais, suas intensões e
intenções. Através da enunciação passam a “ter vida” certas classes de signos
impossíveis de ser empregados no uso cognitivo da língua, conforme Benviniste:
“É preciso então distinguir as entidades que têm na língua seu
estatuto pleno e permanente e aquelas que, emanando da enunciação, não existem
senão na rede de “indivíduos” que a enunciação cria e em relação ao
“aqui-agora” do locutor.” (1988: 86)
Bibliografia:
ANDRADE, Carlos
Drummond. A mesa in: Claro enigma. Rio de Janeiro: Record, 1991.
BENVENISTE, Émile.
Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, p. 81-90, 1988.
CÂMARA JR., J.
Mattoso. Dicionário de Filologia e Gramática referente à Língua Portuguesa. São
Paulo: J. Ozon, 1970.
FIORIN, José Luiz
(org.). Introdução à lingüística II: princípios de análise. São Paulo:
Contexto, p.161-185, 2003.
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. L’énonciation. De la subjectivité dans le
langage. Paris: Armand Colin, 1980.
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