Raquel Teles Yehezkel
“RETÁBULO DE SANTA JOANA
CAROLINA”, DE OSMAN LINS
Trabalho final da disciplina
“Narrativas do Século XX”, ministrada
pela profa. dra. Cláudia Campos Soares.
Faculdade de Letras / UFMG
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INTRODUÇÃO
Este estudo tem como objetivo analisar a narrativa “Retábulo de
Santa Joana Carolina”, do autor pernambucano Osman Lins, a quinta, portanto o
centro, das nove narrativas que compõem o livro Nove, Novena, lançado em
1966. Segundo Augusto Bosi, em História Concisa da Literatura
Brasileira (1994), desde o início do século passado, tem havido esforços
inovadores tanto na temática como na estrutura narrativa do romance brasileiro
moderno, mas poucos autores foram tão rigorosos ao estruturar sua obra como
Osman Lins, autor de O Visitante (1955), Os Gestos (1957), O
Fiel e a Pedra (1961), Nove Novena (1966), Avalovara (1973) e
A Rainha dos Cárceres da Grécia (1976), falecido em 1978.
Osman Lins experimentou em suas narrativas uma ficção complexa, às
vezes difícil, mas sempre inovadora pela consciência construtiva, pelo uso de
símbolos gráficos marcando o monólogo interior, “pela tensão metafísica que
desvenda nexos mais íntimos e dinâmicos entre o eu, o outro e os
objetos” (Bosi, p.422). Sua prosa subjetivizante traz ao primeiro plano os
conteúdos da consciência em seus vários momentos de memória, fantasia ou
reflexão, esvaindo-se a definição do ambiente, que passa a atmosfera, e
deslocando o eixo da trama do tempo ‘objetivo’ ou cronológico para o tempo
psíquico do sujeito, sempre inapreensível em sua totalidade.
Como autor da modernidade também pôs “em cheque a linha de separação
entre formas e gêneros literários” (Paes: p.202), deixando indefinido o gênero
de seus textos; no caso de o “Retábulo”, chamado por alguns de conto, por
outros de novela, “embrião de romance ou micro-romance” (Paes: p.203),
biografia e narrativa, na designação do próprio autor (Paes: p.202).
Osman Lins dedicou-se à busca de novos
recursos de expressão, exigência imposta pela própria dinâmica de sua criação
literária que voltava-se para o nível mais profundo da estrutura narrativa na
tentativa de melhor exprimir sua visão de mundo. As inovações que realizou,
enumeradas anteriormente e analisadas mais detalhadamente a seguir, em sua
própria definição, fazem-se sentir, principalmente, no “modo de organizar” o
todo narrativo e não na estrutura da língua, mais em voga em meados do século
passado. No processo “inventário-invenção” (Bosi: p.394), que cobre várias
possibilidades do ato estético, a diretriz mais moderna se inclinava para o
segundo, privilegiando o aspecto construtivo da linguagem como o mais apto a
significar o universo. Essa diretriz
“tem o
mesmo significado histórico do abstracionismo, que constrói o quadro com entes
geométricos, ou da música concreta, que trabalha a partir dos ruídos e dos sons
tais como a Física conhece [...] E afins são todas as correntes de cultura e de
moda que preferem deter-se nos códigos e nos sinais em si mesmos a aprofundar
os motivos e o sentido ideológico da mensagem” (BOSI: 1994, p.394).
Assim sendo, no momento em que talentos
como Guimarães Rosa, com suas criações léxico-mítico-poéticas baseadas em histórias
coletivas, e Clarice Lisptor, com suas criações lingüístico-existenciais
baseadas na individualidade, mostravam-se imbatíveis esmerando-se na produção
de “objetos de linguagem”, Osman Lins “punha o seu empenho no tecido, no
‘todo’”, firmando-se como um “extraordinário ficcionista de ‘estruturação’”, em
definição de Rinaldo Gama (2006, p.16).
Três características se destacam na leitura de o “Retábulo de Santa
Joana Carolina”: sua natureza estrutural (estética e narrativa) fragmentária; a
história de Joana Carolina em seu contexto sócio-cultural; e uma certa
indefinição temporal e espacial. Dessa forma, pode-se analisar essa narrativa
sob três perspectivas diferentes: a dimensão estética-estrutural marcada por
narradores múltiplos e personagens fragmentadas, a dimensão histórico-social e
a dimensão mítico-religiosa. Este estudo pretende analisar o “Retábulo de Santa
Joana Carolina” à luz dessas perspectivas, dando ênfase à primeira por ter sido
o meu objeto de estudo na apresentação do seminário sobre essa narrativa.
A DIMENSÃO ESTÉTICA-ESTRUTURAL: NARRADORES MÚLTIPLOS E PROTAGONISTA
FRAGMENTADA NA CRIAÇÃO DO “RETÁBULO”
A chave para analisar a dimensão estética das narrativas de Osman
Lins, e, especificamente, de o “Retábulo de Santa Joana Carolina”, parece ter
sido dada pelo próprio autor quando disse que se preocupava com o “modo de
organizar” o “todo” narrativo da obra.
Além de escrever contos e romances, Lins fez também algumas incursões na
área da pintura geométrica. Osman Lins dizia que sua atração por estruturas
geométricas “se devia ao seu interesse por tratados estéticos sobre as
proporções presentes na natureza, matemática, Pitágoras” (Gama, p.19). Essa
atração pode ser observada na estrutura rígida de o “Retábulo de Santa
Joana Carolina”, narrativa centrada na biografia da avó paterna (era filho de
Teófanes Lins, alfaiate), professora primária da zona rural de Pernambuco.
O vocábulo retábulo designa a “estrutura ornamental de pedra ou
madeira que se eleva na parte posterior de um altar” (Houaiss, 2004, p.2444).
Seria como se o autor tivesse construído, por partes, com palavras, a estrutura
de um altar que, pronto, possibilitaria o vislumbre da Santa; a imagem da Santa
como o epicentro para onde se converge toda a atenção, ou seja, o centro narrativo
voltado para a história de Joana Carolina. Não sendo, obviamente, uma
construção que se pretende fidedigna do ser real, pois, como autor moderno,
consciente de sua arte, Osman Lins sabe que a natureza humana não pode ser
apreendida em sua integridade, então constrói através da arte a imagem do
objeto que pretende retratar, mas, nesse caso, constrói-a através da voz de
outros.
Através de fragmentos da memória de um e de outro, por meio de um
discurso polifônico que mistura e sobrepõe diversas vozes conforme o conceito
de dialogismo e de polifonia desenvolvidos
por Bakhtin (2005), Osman Lins tece o todo, tece a obra, constrói o “Retábulo
de Santa Joana Carolina”. Pronto, tem-se então a visão do todo, um vislumbre do
real, uma espécie de mimese, de caricatura, de hicui (do
hebraico: imitação) do real.
A narrativa
fragmentada e não-linear permite também uma leitura não-linear, desafiando o
leitor a assumir uma postura mais ativa no ato da leitura, em busca de uma
compreensão global da obra.
O “Retábulo de Santa Joana Carolina”,
como a Paixão de Jesus Cristo, é composto por doze cenas ou doze Mistérios,
como as nomeia o autor, que, segundo Ana Luiza Andrade, “simbolizam o drama de
vida e morte num ano de labor” (1987, p.125). Cada Mistério, que conta uma
história com princípio, meio e fim, se inicia com uma epígrafe invocadora da
cena a ser narrada e que corresponde a uma passagem marcante da vida da
protagonista - a um mês do ano e a um signo do zodíaco - que, juntas, fecham um
ciclo completo que se inicia com o nascimento de Joana Carolina em um mês de
outubro (Primeiro Mistério) e termina com sua morte em um mês de setembro
(Mistério Final), formando o “todo” da obra: o “Retábulo de Santa Joana
Carolina”.
Como bom exemplar da narrativa moderna, o “Retábulo de Santa Joana
Carolina” realiza com sucesso as noções de incompletude e de fragmentação das
obras e dos seres, tão em voga desde o início do século passado; não apenas no
enredo e na estrutura fracionados, mas também na multiplicidade narrativa e na
construção fragmentária da protagonista, experiência, essa, levada ao extremo.
A sensação de complexidade da
protagonista, que se depreende da leitura, advém da teoria moderna sobre as
personagens. Segundo essa teoria, o romance se baseia na relação de afinidades
e diferenças entre o ser vivo e o ser de ficção manifestada através da
personagem. Segundo Antônio Cândido (1987), o enredo existe através das
personagens. Enredo e personagem exprimem a visão da vida, os significados e
valores que os animam, e são, no conjunto, elaborados pela técnica. “A
personagem representa a possibilidade de adesão afetiva do leitor, pelos
mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o
enredo e as idéias, e os torna vivos” (1987, p.54), portanto a leitura depende
basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. Por isso
ela só adquire pleno significado no contexto, e, sendo assim, a “construção
estrutural é a maior responsável pela força e eficácia” da narrativa (1987, p.55).
Essa construção estrutural é realizada
com sucesso no “Retábulo de Santa Joana Carolina”. Osman Lins parece ter
consciência de que a “noção a respeito de um ser, elaborada por outro ser, é
sempre incompleta em relação a percepção física inicial” (1987, p.56), e que o
conhecimento dos seres é fragmentário. Assim, Lins parece investigar, através
das vozes dos narradores, os fragmentos desse ser, os fragmentos de Joana
Carolina, “que nos são dados por uma conversa, um ato, uma seqüência de atos,
uma afirmação, uma informação” (1987, p.56). Sendo assim, o “Retábulo de Santa
Joana Carolina”, como um todo, mesmo se mostrando como unidade bem tecida, não
é uno, nem contínuo e, como uma narrativa moderna, nem pretende de sê-lo.
A incompletude da personagem está intrinsecamente ligada à
fragmentação estrutural da obra e à multiplicidade narrativa. É a partir da
polifonia, da voz de outros, que vai-se delineando a história de vida e a
personalidade da protagonista.
A narrativa é composta por monólogos de
narradores que se alternam em cada Mistério. Cada narrador é identificado por
um sinal gráfico que encabeça suas “ruminações” e que, segundo José Paulo Paes
(1994, p.204), “tem uma funcionalidade intrínseca na economia da narrativa” e é
apenas mais um dos recursos inovadores da prosa de Osman Lins.
A parteira que trouxe JC ao mundo, negra agregada à família e hora
alguma nomeada, narra três mistérios: o primeiro, o oitavo e o décimo. No Primeiro
Mistério, passado no mês de Outubro (único mês que não é literalmente
citado) e marcado pelo signo de Libra (... tudo medido pela invisível
balança p.153), conta sobre o nascimento de JC e de como, no futuro, será o
sustento de sua mãe, Totônia: ... Joana, apenas, Joana Carolina, apesar da
pobreza, será seu arrimo: a velha haverá de morrer aos seus cuidados, em sua
casa, daqui a trinta e seis anos, no Engenho da Serra Grande (p.154), o
fiel que manterá o equilíbrio da família.
O Segundo Mistério, passado no mês de novembro e marcado pelo signo
de Escorpião, narra como JC se entretinha acompanhando enterros de crianças e
brincando com escorpiões, induzindo o narrador e outros a crer que ela tinha partes
com o demônio, pois o aceitamos bem mais facilmente que aos anjos (p.155).
No Terceiro Mistério, passado no mês de dezembro e marcado pelo
signo de Sagitário (... estenderam uma toalha de crochê, com figuras de
centauros p.156.), Jerônimo, marido de JC, relata como se apaixonou ao
vislumbrar pela primeira vez o rosto firme e delicado a um tempo. Adaga de
Cristal (p.156), da jovem triplamente iluminada, na procissão em que
pagava promessa por ter sido arrancada à imobilidade e à cegueira por obra
de um milagre, para vir ao meu encontro com seus claros pés e descobrir-me
(p.156).
O Quarto Mistério, passado no mês de janeiro e marcado pelo signo de
Capricórnio, é narrado pelo filho mais velho, Álvaro, que conta como o pai os
entretinha fazendo um galo montar a cabra Gedália enquanto estiveram
doentes, atingidos por uma epidemia de bexiga que matou a única irmã,
Maria do Carmo, pois nesse tempo Teófanes (pai do autor) e Laura,
nossos irmãos mais novos, ainda não nascidos (p.157). Conta também como JC,
dedicada, curou o braço do segundo filho, Nô, atingido pela doença: Nossa
mãe todos os dias, dar-lhe-á massagens com sebo de carneiro, todos os dias,
pacientemente, sem faltar um dia, até que ele poderá mover de novo o braço...
(p.158).
No Quinto Mistério, passado no mês de fevereiro e marcado pelo signo
de Aquarius (A lenta rotação da água, em torno de sua vária natureza. Sua
oscilação entre a paz dos copos e as inundações – p.158.), Totônia relata
como Jerônimo pediu a mão de JC em casamento e como morreu no período de
carnaval: Tentei demovê-lo. Éramos gente sem posses de poucas letras. [...]
Tudo para viver esses dez anos, até morrer de repente (p.158-9); como
era estudioso: Leio muito (p.159) – formou-se para a rábula –, sensível:
Não tenha acanhamento de suas qualidades de menino. Sua fraqueza... [...] Devia ser enterrado num caixão azul, feito
os meninos pequenos. Tão bom que muitas vezes maldei se Joana sentia mesmo
prazer, prazer de mulher, em deitar-se com ele... (ibidem).
O Sexto Mistério, passado no mês de março e marcado pelo signo de
Peixes (Tinha um anzol na língua, fiquei mudo, um peixe p.163.), é
narrado pelo filho do dono da fazenda Engenho Grande onde JC vai dar aulas após
a morte do marido. Esse rapaz sem escrúpulos simboliza o poder ilimitado da
oligarquia nacional; solteiro, mas pai de vinte e dois filhos com dezoito
mulheres diferentes, tenta seduzir JC, sem sucesso, durante os sete anos, sete
meses e sete dias em que ela vive nas terras dele: Tive-lhe ódio, durante
alguns anos. Emprenhava as mulheres e detestava os filhos que nasciam, porque
nenhum era seu. Com o tempo, o ódio foi passando, veio uma espécie de
enlevo, talvez de gratidão. Acabei achando que Joana Carolina foi minha transcendência,
meu quinhão de espanto numa vida tão pobre de mistério (p.163-4).
O Sétimo Mistério, passado no mês de Abril e marcado pelo signo de
Áries (FIANDEIRA CARNEIRO FUSO LÃ... eu no carneiro, Maria do Carmo na
ovelha. Quase nossos irmãos, esses dois bichos... p.166), é narrado por
Laura, a filha caçula. Relata a dura realidade da infância no Engenho Serra
Grande e a alegria da mãe pela mudança da família para o Engenho das Queimadas,
pois não precisaria mais fazer o longo percurso à pé até a cidade para receber
seus vencimentos: As lágrimas saltavam dos olhos cansados de mamãe, moídos
de fazer, todos aqueles anos, toalhas de crochê à luz do candeeiro, para vender
na cidade. [...] Pela única vez em toda a sua vida, ergueu o punho, um
punho incrivelmente frágil, numa revolta breve contra aquelas estradas cento e
oitenta vezes percorridas. Como pudera esconder, tantos anos durante, seu
pavor? (p.168-9).
No Oitavo Mistério, passado no mês de Maio e marcado pelo signo de Touro,
a parteira relata como Totônia foi morta pela chifrada de um touro, quando
visitava JC na fazenda em que era professora rural: A cabeça do Touro, com suas aspas
recurvas, ocupa quase todo o quadrado da janela (p.168). No meio do
cercado, eu e ela sem árvores por perto, o Touro, inesperado, pulou do chão com
seus chifres (p.169). Referindo-se ao filho do dono da fazenda, que
socorreu-as quando foram agredidas pelo touro, diz: Pensar que quase lhe
beijei as unhas, sem saber que ele trazia no gibão as bestas da maldade, com
seus cascos ferrados, seus chifres pontudos! (p.169).
No Nono Mistério, passado no mês de Junho e marcado pelo signo de
Gêmeos (Duas vezes foi criado o mundo... p.171; no dia 12 de junho
p.172, dia dos namorados; só o nome gêmeo é realmente idêntico ao
nome gêmeo, uma alusão de que palavra é referencial apenas de si mesma),
Cristina e Miguel, almas gêmeas, jovens de classes sociais diferentes, relatam
– as vozes que se alternam são marcadas no texto por sinais distintos – sua
paixão e fuga de casa, escondendo-se do pai de Cristina, rico e poderoso
coronel que não apoiava a união, até que, durante a fuga, o casal chega à casa
de JC, que os acolhe e consegue dissuadir seus perseguidores e,
conseqüentemente, o pai da moça, que se encanta com a conduta de JC, pedindo-a
em casamento, ao que ela responde: Na verdade, havendo-me consagrado a meu
esposo pela vida inteira, a ele permaneço fiel. Assim, muito me honra a sua
proposta, amável e generosa. Ela significa, se eu a aceitasse, amparo e
estabilidade pelo resto dos meus dias. Mas, então, o que seria de minha alma? (p.176)
– reafirmando sua fidelidade ao marido, mesmo depois de morto há anos.
No Décimo Mistério, passado no mês de Julho e marcado pelo signo de
Câncer (A velhice é feito um caranguejo, não envelhecemos por igual
p.177), a parteira narra como que, por um milagre, JC salvou da morte por tiro
um menino sem pernas. Nesse Mistério, a narradora é aquela que detém a verdade
por ser testemunha indireta (por sua intimidade com JC) de um “milagre” realizado
por JC e serve de mediadora entre as vozes representativas da sociedade,
marcadas apenas pelos números 1, 2, 3 e 4: a primeira, faz as pergunta sobre o
evento; a segunda responde sempre sem precisão, fazendo conjecturas baseadas em
rumores; a terceira calunia os envolvidos na evento; e a quarta, apazigua.
O Décimo Primeiro Mistério, passado no mês de Agosto e marcado pelo
signo de Leão (O que é o que é? Leão de invisíveis dentes, de dente é feito
e morde pela juba, pela cauda, pelo corpo inteiro: a morte que, como o
fogo/Leão, também consome p.179), é narrado pelo padre que acompanhou JC em seu
leito de morte: “Padre: tentei minha vida inteira, viver na justiça. Terei
conseguido? Quem muito fala, muito erra. A gente pode se impedir de falar; mas
não de viver. Vivi oitenta e seis anos” (p.180). Então, através da rugas,
dentre a cabeleira desfeita, eu a vi em sua juventude. [...] Mas dentro desse
rosto, que adquiriu de súbito uma transparência inexplicável ... brilhava a
face de Joana aos vinte e poucos anos, com uma flama, um arrebatamento e uma
nobreza que pareciam desafiar a vida e suas garras [...] ... pensei que ela
guardara para mim, sem o saber, outra espécie de herança, o privilégio de ser a
testemunha, em seu leito mortuário, daquela ressurreição fugaz... (p.180-1).
O Mistério Final, passado no mês de Setembro e marcado pelo signo de
Virgem (Senti orgulho de ser mãe dos mortos e viúva, de não ser virgem p.183,
há também o sentido de Virgem Santa, para JC que ascendeu ao Céu.), fala sobre
o enterro de JC, sua dissolução entre os seres da terra e sua chegada a uma
outra dimensão. É narrado por uma voz coletiva, na segunda pessoa do plural
“nós”; pelos despossuídos, à margem do sistema, narrador indefinido – que
permite às vezes a intromissão de outras vozes, inclusive a de JC. O monólogo é
marcado pelo sinal de infinito ¥,
simbolizando que a história de JC, por ter sido contada, permanecerá; que
histórias de anônimos como JC são infinitas, e infinitas são as vozes que podem
contá-las: ... homens de meio de vida incerto e sem futuro, vamos conduzindo
Joana para o cemitério, nós, os ninguéns da cidade, que sempre a ignoraram os
outros, gente do dinheiro e do poder. [...] Não é o primeiro caixão que vai
conosco, nem será o último, na alça de muitos seguramos, mortos importantes ou
pobres como nós, ... porém nunca tivemos a impressão tão viva e tão perturbadora
de que esta é a arca do Próximo Dilúvio, ... e que somente Joana sobreviverá
(p.182). Viveu anos com mansidão e
justiça, humildade e firmeza, amor e comiseração. Morreu com mínimos bens e
reduzidos amigos. Nunca de nunca a rapinagem alheia liberou ambições em seu
espírito. Nunca o mal sofrido gerou sem sua alma outras maldades... [...]
Humildemente, em silêncio, Joana Carolina toma seu lugar, as mãos unidas, em
Prados, Pumas e Figueiras... e Campos, no vestido que era o das tardes de
domingo e penetrada do silêncio com que ficava sozinha (p.184).
Ao final das contas, os fragmentos proporcionados
pelas vozes da narrativa permitem uma noção conjunta e coerente desse ser; mas
ainda assim essa noção é oscilante, aproximativa, descontínua. Os seres são,
por sua natureza, misteriosos, inesperados. Esta constatação é fundamental em
toda a literatura moderna e Osman Lins demonstra estar ciente disso. Os
monólogos interiores, ao misturar em “ziguezague o passado e o presente da
protagonista”, conseguem dar à figura de Joana Carolina “uma completude
ficcional que só o romance de muitas páginas, normalmente, conseguiria atingir”
(Paes: 1994, p.202-3).
CONCLUSÃO
Conforme foi desenvolvido pelo grupo
em sala de aula, pôde-se perceber que, sob a dimensão histórico-social, o “Retábulo
de Santa Joana Carolina” é uma crítica violenta contra o sistema político-social
do país, retratando um Brasil marginal: interiorano, nordestino, pobre e rural;
um quadro de descaso, tanto por parte do governo quanto da elite, para com a
população pobre e desprotegida - inclusive de leis; mostrando que nascer nessas
condições sociais seria como assinar uma sentença de exclusão (de quase tudo),
selar um destino (a ser encarado com resignação e muito pouco provável de ser
revertido).
Também foi bem enfatizada pelo grupo
a dimensão mítico-religiosa, bem marcada no texto pelo título da obra, pela
divisão em Mistérios, pelos diversos ciclos da natureza, pelos signos do
zodíaco, pelos sinais gráficos que marcam as vozes da narrativa, pela
santificação de JC através da religiosidade popular, e, principalmente, pelas epígrafes
que marcam a supremacia da criação “divina” (do cosmo) sobre a criação humana
(suas obras), da ordem cósmica sobre o desejo e o arbítrio humanos.
Concluindo, pode-se dizer que, além de ser uma biografia construída no
mínimo de forma muito inusitada, o “Retábulo de Santa Joana Carolina” é, antes
de tudo, uma “metáfora estrutural” (Gama: 2006). Portanto, dentre as três perspectivas de
análise propostas para essa narrativa no início deste estudo, a dimensão
estética-estrutural seria, em minha opinião, a maior responsável pela sustentação
do “retábulo” e, conseqüentemente, a maior responsável pela verossimilhança, “força
e eficácia” da obra. Isso reforçaria a idéia proposta pelo crítico literário
Antônio Cândido, em A personagem de ficção (1987, p.55), de que a leitura
de um romance dependeria basicamente da aceitação da verdade da personagem por
parte do leitor e que a “construção estrutural” é que daria sustento ao enredo
e à personagem. Nessa linha de raciocínio, pode-se afirmar que Osman Lins
primou na construção de seu “retábulo”, da história que se propôs narrar, e
que, através da criação literária, imortalizou Joana Carolina, santificada,
aparentemente, pela voz popular, mas, efetivamente, por obra do autor.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Ana Luiza. Osman Lins: crítica e criação. São Paulo:
Hucitec, 1987.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievisky. São Paulo:
Forense Universitária, 2005.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São
Paulo: Cultrix, 1994.
CÂNDIDO, Antônio e outros. A personagem de ficção. São Paulo:
Perspectiva, 1987.
GAMA, Rinaldo. “Metáfora estrutural de Osman Lins alça novo vôo”.
In: Entre Livros. São Paulo, Ediouro – Duetto, no.1, ISSN 1808-1010,
2006.
LINS, Osman. “Retábulo de Santa Joana Carolina”. In: BOSI, Alfredo -
Org. O Conto Brasileiro Contemporâneo.
São Paulo: Cultrix, 1975.
PAES, José Paulo. “Palavra feita vida”. In: LINS, Osman. Nove,
novena: posfácio. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
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