sábado, 20 de julho de 2013

"O RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA", DE OSMAN LINS



Raquel Teles Yehezkel








“RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA”, DE OSMAN LINS





Trabalho final da disciplina
“Narrativas do Século XX”, ministrada
pela profa. dra. Cláudia Campos Soares.











Belo Horizonte 25 de novembro de 2007 
Faculdade de Letras / UFMG
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INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objetivo analisar a narrativa “Retábulo de Santa Joana Carolina”, do autor pernambucano Osman Lins, a quinta, portanto o centro, das nove narrativas que compõem o livro Nove, Novena, lançado em 1966. Segundo Augusto Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira (1994), desde o início do século passado, tem havido esforços inovadores tanto na temática como na estrutura narrativa do romance brasileiro moderno, mas poucos autores foram tão rigorosos ao estruturar sua obra como Osman Lins, autor de O Visitante (1955), Os Gestos (1957), O Fiel e a Pedra (1961), Nove Novena (1966), Avalovara (1973) e A Rainha dos Cárceres da Grécia (1976), falecido em 1978.

Osman Lins experimentou em suas narrativas uma ficção complexa, às vezes difícil, mas sempre inovadora pela consciência construtiva, pelo uso de símbolos gráficos marcando o monólogo interior, “pela tensão metafísica que desvenda nexos mais íntimos e dinâmicos entre o eu, o outro e os objetos” (Bosi, p.422). Sua prosa subjetivizante traz ao primeiro plano os conteúdos da consciência em seus vários momentos de memória, fantasia ou reflexão, esvaindo-se a definição do ambiente, que passa a atmosfera, e deslocando o eixo da trama do tempo ‘objetivo’ ou cronológico para o tempo psíquico do sujeito, sempre inapreensível em sua totalidade.

Como autor da modernidade também pôs “em cheque a linha de separação entre formas e gêneros literários” (Paes: p.202), deixando indefinido o gênero de seus textos; no caso de o “Retábulo”, chamado por alguns de conto, por outros de novela, “embrião de romance ou micro-romance” (Paes: p.203), biografia e narrativa, na designação do próprio autor (Paes: p.202).
Osman Lins dedicou-se à busca de novos recursos de expressão, exigência imposta pela própria dinâmica de sua criação literária que voltava-se para o nível mais profundo da estrutura narrativa na tentativa de melhor exprimir sua visão de mundo. As inovações que realizou, enumeradas anteriormente e analisadas mais detalhadamente a seguir, em sua própria definição, fazem-se sentir, principalmente, no “modo de organizar” o todo narrativo e não na estrutura da língua, mais em voga em meados do século passado. No processo “inventário-invenção” (Bosi: p.394), que cobre várias possibilidades do ato estético, a diretriz mais moderna se inclinava para o segundo, privilegiando o aspecto construtivo da linguagem como o mais apto a significar o universo. Essa diretriz

“tem o mesmo significado histórico do abstracionismo, que constrói o quadro com entes geométricos, ou da música concreta, que trabalha a partir dos ruídos e dos sons tais como a Física conhece [...] E afins são todas as correntes de cultura e de moda que preferem deter-se nos códigos e nos sinais em si mesmos a aprofundar os motivos e o sentido ideológico da mensagem” (BOSI: 1994, p.394).

Assim sendo, no momento em que talentos como Guimarães Rosa, com suas criações léxico-mítico-poéticas baseadas em histórias coletivas, e Clarice Lisptor, com suas criações lingüístico-existenciais baseadas na individualidade, mostravam-se imbatíveis esmerando-se na produção de “objetos de linguagem”, Osman Lins “punha o seu empenho no tecido, no ‘todo’”, firmando-se como um “extraordinário ficcionista de ‘estruturação’”, em definição de Rinaldo Gama (2006, p.16).

Três características se destacam na leitura de o “Retábulo de Santa Joana Carolina”: sua natureza estrutural (estética e narrativa) fragmentária; a história de Joana Carolina em seu contexto sócio-cultural; e uma certa indefinição temporal e espacial. Dessa forma, pode-se analisar essa narrativa sob três perspectivas diferentes: a dimensão estética-estrutural marcada por narradores múltiplos e personagens fragmentadas, a dimensão histórico-social e a dimensão mítico-religiosa. Este estudo pretende analisar o “Retábulo de Santa Joana Carolina” à luz dessas perspectivas, dando ênfase à primeira por ter sido o meu objeto de estudo na apresentação do seminário sobre essa narrativa.

A DIMENSÃO ESTÉTICA-ESTRUTURAL: NARRADORES MÚLTIPLOS E PROTAGONISTA FRAGMENTADA NA CRIAÇÃO DO “RETÁBULO”

A chave para analisar a dimensão estética das narrativas de Osman Lins, e, especificamente, de o “Retábulo de Santa Joana Carolina”, parece ter sido dada pelo próprio autor quando disse que se preocupava com o “modo de organizar” o “todo” narrativo da obra.  Além de escrever contos e romances, Lins fez também algumas incursões na área da pintura geométrica. Osman Lins dizia que sua atração por estruturas geométricas “se devia ao seu interesse por tratados estéticos sobre as proporções presentes na natureza, matemática, Pitágoras” (Gama, p.19). Essa atração pode ser observada na estrutura rígida de o “Retábulo de Santa Joana Carolina”, narrativa centrada na biografia da avó paterna (era filho de Teófanes Lins, alfaiate), professora primária da zona rural de Pernambuco.

O vocábulo retábulo designa a “estrutura ornamental de pedra ou madeira que se eleva na parte posterior de um altar” (Houaiss, 2004, p.2444). Seria como se o autor tivesse construído, por partes, com palavras, a estrutura de um altar que, pronto, possibilitaria o vislumbre da Santa; a imagem da Santa como o epicentro para onde se converge toda a atenção, ou seja, o centro narrativo voltado para a história de Joana Carolina. Não sendo, obviamente, uma construção que se pretende fidedigna do ser real, pois, como autor moderno, consciente de sua arte, Osman Lins sabe que a natureza humana não pode ser apreendida em sua integridade, então constrói através da arte a imagem do objeto que pretende retratar, mas, nesse caso, constrói-a através da voz de outros.

Através de fragmentos da memória de um e de outro, por meio de um discurso polifônico que mistura e sobrepõe diversas vozes conforme o conceito de dialogismo e de polifonia  desenvolvidos por Bakhtin (2005), Osman Lins tece o todo, tece a obra, constrói o “Retábulo de Santa Joana Carolina”. Pronto, tem-se então a visão do todo, um vislumbre do real, uma espécie de mimese, de caricatura, de hicui (do hebraico: imitação) do real.

A narrativa fragmentada e não-linear permite também uma leitura não-linear, desafiando o leitor a assumir uma postura mais ativa no ato da leitura, em busca de uma compreensão global da obra.

O “Retábulo de Santa Joana Carolina”, como a Paixão de Jesus Cristo, é composto por doze cenas ou doze Mistérios, como as nomeia o autor, que, segundo Ana Luiza Andrade, “simbolizam o drama de vida e morte num ano de labor” (1987, p.125). Cada Mistério, que conta uma história com princípio, meio e fim, se inicia com uma epígrafe invocadora da cena a ser narrada e que corresponde a uma passagem marcante da vida da protagonista - a um mês do ano e a um signo do zodíaco - que, juntas, fecham um ciclo completo que se inicia com o nascimento de Joana Carolina em um mês de outubro (Primeiro Mistério) e termina com sua morte em um mês de setembro (Mistério Final), formando o “todo” da obra: o “Retábulo de Santa Joana Carolina”.

Como bom exemplar da narrativa moderna, o “Retábulo de Santa Joana Carolina” realiza com sucesso as noções de incompletude e de fragmentação das obras e dos seres, tão em voga desde o início do século passado; não apenas no enredo e na estrutura fracionados, mas também na multiplicidade narrativa e na construção fragmentária da protagonista, experiência, essa, levada ao extremo.

A sensação de complexidade da protagonista, que se depreende da leitura, advém da teoria moderna sobre as personagens. Segundo essa teoria, o romance se baseia na relação de afinidades e diferenças entre o ser vivo e o ser de ficção manifestada através da personagem. Segundo Antônio Cândido (1987), o enredo existe através das personagens. Enredo e personagem exprimem a visão da vida, os significados e valores que os animam, e são, no conjunto, elaborados pela técnica. “A personagem representa a possibilidade de adesão afetiva do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos” (1987, p.54), portanto a leitura depende basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. Por isso ela só adquire pleno significado no contexto, e, sendo assim, a “construção estrutural é a maior responsável pela força e eficácia” da narrativa (1987, p.55).

Essa construção estrutural é realizada com sucesso no “Retábulo de Santa Joana Carolina”. Osman Lins parece ter consciência de que a “noção a respeito de um ser, elaborada por outro ser, é sempre incompleta em relação a percepção física inicial” (1987, p.56), e que o conhecimento dos seres é fragmentário. Assim, Lins parece investigar, através das vozes dos narradores, os fragmentos desse ser, os fragmentos de Joana Carolina, “que nos são dados por uma conversa, um ato, uma seqüência de atos, uma afirmação, uma informação” (1987, p.56). Sendo assim, o “Retábulo de Santa Joana Carolina”, como um todo, mesmo se mostrando como unidade bem tecida, não é uno, nem contínuo e, como uma narrativa moderna, nem pretende de sê-lo.

A incompletude da personagem está intrinsecamente ligada à fragmentação estrutural da obra e à multiplicidade narrativa. É a partir da polifonia, da voz de outros, que vai-se delineando a história de vida e a personalidade da protagonista.

A narrativa é composta por monólogos de narradores que se alternam em cada Mistério. Cada narrador é identificado por um sinal gráfico que encabeça suas “ruminações” e que, segundo José Paulo Paes (1994, p.204), “tem uma funcionalidade intrínseca na economia da narrativa” e é apenas mais um dos recursos inovadores da prosa de Osman Lins.

A parteira que trouxe JC ao mundo, negra agregada à família e hora alguma nomeada, narra três mistérios: o primeiro, o oitavo e o décimo. No Primeiro Mistério, passado no mês de Outubro (único mês que não é literalmente citado) e marcado pelo signo de Libra (... tudo medido pela invisível balança p.153), conta sobre o nascimento de JC e de como, no futuro, será o sustento de sua mãe, Totônia: ... Joana, apenas, Joana Carolina, apesar da pobreza, será seu arrimo: a velha haverá de morrer aos seus cuidados, em sua casa, daqui a trinta e seis anos, no Engenho da Serra Grande (p.154), o fiel que manterá o equilíbrio da família.

O Segundo Mistério, passado no mês de novembro e marcado pelo signo de Escorpião, narra como JC se entretinha acompanhando enterros de crianças e brincando com escorpiões, induzindo o narrador e outros a crer que ela tinha partes com o demônio, pois o aceitamos bem mais facilmente que aos anjos (p.155).

No Terceiro Mistério, passado no mês de dezembro e marcado pelo signo de Sagitário (... estenderam uma toalha de crochê, com figuras de centauros p.156.), Jerônimo, marido de JC, relata como se apaixonou ao vislumbrar pela primeira vez o rosto firme e delicado a um tempo. Adaga de Cristal (p.156), da jovem triplamente iluminada, na procissão em que pagava promessa por ter sido arrancada à imobilidade e à cegueira por obra de um milagre, para vir ao meu encontro com seus claros pés e descobrir-me (p.156).

O Quarto Mistério, passado no mês de janeiro e marcado pelo signo de Capricórnio, é narrado pelo filho mais velho, Álvaro, que conta como o pai os entretinha fazendo um galo montar a cabra Gedália enquanto estiveram doentes, atingidos por uma epidemia de bexiga que matou a única irmã, Maria do Carmo, pois nesse tempo Teófanes (pai do autor) e Laura, nossos irmãos mais novos, ainda não nascidos (p.157). Conta também como JC, dedicada, curou o braço do segundo filho, Nô, atingido pela doença: Nossa mãe todos os dias, dar-lhe-á massagens com sebo de carneiro, todos os dias, pacientemente, sem faltar um dia, até que ele poderá mover de novo o braço... (p.158).

No Quinto Mistério, passado no mês de fevereiro e marcado pelo signo de Aquarius (A lenta rotação da água, em torno de sua vária natureza. Sua oscilação entre a paz dos copos e as inundações – p.158.), Totônia relata como Jerônimo pediu a mão de JC em casamento e como morreu no período de carnaval: Tentei demovê-lo. Éramos gente sem posses de poucas letras. [...] Tudo para viver esses dez anos, até morrer de repente (p.158-9); como era estudioso: Leio muito (p.159) – formou-se para a rábula –, sensível: Não tenha acanhamento de suas qualidades de menino. Sua fraqueza... [...]  Devia ser enterrado num caixão azul, feito os meninos pequenos. Tão bom que muitas vezes maldei se Joana sentia mesmo prazer, prazer de mulher, em deitar-se com ele... (ibidem).

O Sexto Mistério, passado no mês de março e marcado pelo signo de Peixes (Tinha um anzol na língua, fiquei mudo, um peixe p.163.), é narrado pelo filho do dono da fazenda Engenho Grande onde JC vai dar aulas após a morte do marido. Esse rapaz sem escrúpulos simboliza o poder ilimitado da oligarquia nacional; solteiro, mas pai de vinte e dois filhos com dezoito mulheres diferentes, tenta seduzir JC, sem sucesso, durante os sete anos, sete meses e sete dias em que ela vive nas terras dele: Tive-lhe ódio, durante alguns anos. Emprenhava as mulheres e detestava os filhos que nasciam, porque nenhum era seu. Com o tempo, o ódio foi passando, veio uma espécie de enlevo, talvez de gratidão. Acabei achando que Joana Carolina foi minha transcendência, meu quinhão de espanto numa vida tão pobre de mistério (p.163-4).

O Sétimo Mistério, passado no mês de Abril e marcado pelo signo de Áries (FIANDEIRA CARNEIRO FUSO LÃ... eu no carneiro, Maria do Carmo na ovelha. Quase nossos irmãos, esses dois bichos... p.166), é narrado por Laura, a filha caçula. Relata a dura realidade da infância no Engenho Serra Grande e a alegria da mãe pela mudança da família para o Engenho das Queimadas, pois não precisaria mais fazer o longo percurso à pé até a cidade para receber seus vencimentos: As lágrimas saltavam dos olhos cansados de mamãe, moídos de fazer, todos aqueles anos, toalhas de crochê à luz do candeeiro, para vender na cidade. [...] Pela única vez em toda a sua vida, ergueu o punho, um punho incrivelmente frágil, numa revolta breve contra aquelas estradas cento e oitenta vezes percorridas. Como pudera esconder, tantos anos durante, seu pavor? (p.168-9).

No Oitavo Mistério, passado no mês de Maio e marcado pelo signo de Touro, a parteira relata como Totônia foi morta pela chifrada de um touro, quando visitava JC na fazenda em que era professora rural:  A cabeça do Touro, com suas aspas recurvas, ocupa quase todo o quadrado da janela (p.168). No meio do cercado, eu e ela sem árvores por perto, o Touro, inesperado, pulou do chão com seus chifres (p.169). Referindo-se ao filho do dono da fazenda, que socorreu-as quando foram agredidas pelo touro, diz: Pensar que quase lhe beijei as unhas, sem saber que ele trazia no gibão as bestas da maldade, com seus cascos ferrados, seus chifres pontudos! (p.169).

No Nono Mistério, passado no mês de Junho e marcado pelo signo de Gêmeos (Duas vezes foi criado o mundo... p.171; no dia 12 de junho p.172, dia dos namorados; só o nome gêmeo é realmente idêntico ao nome gêmeo, uma alusão de que palavra é referencial apenas de si mesma), Cristina e Miguel, almas gêmeas, jovens de classes sociais diferentes, relatam – as vozes que se alternam são marcadas no texto por sinais distintos ­– sua paixão e fuga de casa, escondendo-se do pai de Cristina, rico e poderoso coronel que não apoiava a união, até que, durante a fuga, o casal chega à casa de JC, que os acolhe e consegue dissuadir seus perseguidores e, conseqüentemente, o pai da moça, que se encanta com a conduta de JC, pedindo-a em casamento, ao que ela responde: Na verdade, havendo-me consagrado a meu esposo pela vida inteira, a ele permaneço fiel. Assim, muito me honra a sua proposta, amável e generosa. Ela significa, se eu a aceitasse, amparo e estabilidade pelo resto dos meus dias. Mas, então, o que seria de minha alma? (p.176) – reafirmando sua fidelidade ao marido, mesmo depois de morto há anos.

No Décimo Mistério, passado no mês de Julho e marcado pelo signo de Câncer (A velhice é feito um caranguejo, não envelhecemos por igual p.177), a parteira narra como que, por um milagre, JC salvou da morte por tiro um menino sem pernas. Nesse Mistério, a narradora é aquela que detém a verdade por ser testemunha indireta (por sua intimidade com JC) de um “milagre” realizado por JC e serve de mediadora entre as vozes representativas da sociedade, marcadas apenas pelos números 1, 2, 3 e 4: a primeira, faz as pergunta sobre o evento; a segunda responde sempre sem precisão, fazendo conjecturas baseadas em rumores; a terceira calunia os envolvidos na evento; e a quarta, apazigua.

O Décimo Primeiro Mistério, passado no mês de Agosto e marcado pelo signo de Leão (O que é o que é? Leão de invisíveis dentes, de dente é feito e morde pela juba, pela cauda, pelo corpo inteiro: a morte que, como o fogo/Leão, também consome p.179), é narrado pelo padre que acompanhou JC em seu leito de morte: “Padre: tentei minha vida inteira, viver na justiça. Terei conseguido? Quem muito fala, muito erra. A gente pode se impedir de falar; mas não de viver. Vivi oitenta e seis anos” (p.180). Então, através da rugas, dentre a cabeleira desfeita, eu a vi em sua juventude. [...] Mas dentro desse rosto, que adquiriu de súbito uma transparência inexplicável ... brilhava a face de Joana aos vinte e poucos anos, com uma flama, um arrebatamento e uma nobreza que pareciam desafiar a vida e suas garras [...] ... pensei que ela guardara para mim, sem o saber, outra espécie de herança, o privilégio de ser a testemunha, em seu leito mortuário, daquela ressurreição fugaz... (p.180-1).

O Mistério Final, passado no mês de Setembro e marcado pelo signo de Virgem (Senti orgulho de ser mãe dos mortos e viúva, de não ser virgem p.183, há também o sentido de Virgem Santa, para JC que ascendeu ao Céu.), fala sobre o enterro de JC, sua dissolução entre os seres da terra e sua chegada a uma outra dimensão. É narrado por uma voz coletiva, na segunda pessoa do plural “nós”; pelos despossuídos, à margem do sistema, narrador indefinido – que permite às vezes a intromissão de outras vozes, inclusive a de JC. O monólogo é marcado pelo sinal de infinito ¥, simbolizando que a história de JC, por ter sido contada, permanecerá; que histórias de anônimos como JC são infinitas, e infinitas são as vozes que podem contá-las: ... homens de meio de vida incerto e sem futuro, vamos conduzindo Joana para o cemitério, nós, os ninguéns da cidade, que sempre a ignoraram os outros, gente do dinheiro e do poder. [...] Não é o primeiro caixão que vai conosco, nem será o último, na alça de muitos seguramos, mortos importantes ou pobres como nós, ... porém nunca tivemos a impressão tão viva e tão perturbadora de que esta é a arca do Próximo Dilúvio, ... e que somente Joana sobreviverá (p.182).  Viveu anos com mansidão e justiça, humildade e firmeza, amor e comiseração. Morreu com mínimos bens e reduzidos amigos. Nunca de nunca a rapinagem alheia liberou ambições em seu espírito. Nunca o mal sofrido gerou sem sua alma outras maldades... [...] Humildemente, em silêncio, Joana Carolina toma seu lugar, as mãos unidas, em Prados, Pumas e Figueiras... e Campos, no vestido que era o das tardes de domingo e penetrada do silêncio com que ficava sozinha (p.184).

Ao final das contas, os fragmentos proporcionados pelas vozes da narrativa permitem uma noção conjunta e coerente desse ser; mas ainda assim essa noção é oscilante, aproximativa, descontínua. Os seres são, por sua natureza, misteriosos, inesperados. Esta constatação é fundamental em toda a literatura moderna e Osman Lins demonstra estar ciente disso. Os monólogos interiores, ao misturar em “ziguezague o passado e o presente da protagonista”, conseguem dar à figura de Joana Carolina “uma completude ficcional que só o romance de muitas páginas, normalmente, conseguiria atingir” (Paes: 1994, p.202-3).

CONCLUSÃO           

Conforme foi desenvolvido pelo grupo em sala de aula, pôde-se perceber que, sob a dimensão histórico-social, o “Retábulo de Santa Joana Carolina” é uma crítica violenta contra o sistema político-social do país, retratando um Brasil marginal: interiorano, nordestino, pobre e rural; um quadro de descaso, tanto por parte do governo quanto da elite, para com a população pobre e desprotegida - inclusive de leis; mostrando que nascer nessas condições sociais seria como assinar uma sentença de exclusão (de quase tudo), selar um destino (a ser encarado com resignação e muito pouco provável de ser revertido).

Também foi bem enfatizada pelo grupo a dimensão mítico-religiosa, bem marcada no texto pelo título da obra, pela divisão em Mistérios, pelos diversos ciclos da natureza, pelos signos do zodíaco, pelos sinais gráficos que marcam as vozes da narrativa, pela santificação de JC através da religiosidade popular, e, principalmente, pelas epígrafes que marcam a supremacia da criação “divina” (do cosmo) sobre a criação humana (suas obras), da ordem cósmica sobre o desejo e o arbítrio humanos.

Concluindo, pode-se dizer que, além de ser uma biografia construída no mínimo de forma muito inusitada, o “Retábulo de Santa Joana Carolina” é, antes de tudo, uma “metáfora estrutural” (Gama: 2006).  Portanto, dentre as três perspectivas de análise propostas para essa narrativa no início deste estudo, a dimensão estética-estrutural seria, em minha opinião, a maior responsável pela sustentação do “retábulo” e, conseqüentemente, a maior responsável pela verossimilhança, “força e eficácia” da obra. Isso reforçaria a idéia proposta pelo crítico literário Antônio Cândido, em A personagem de ficção (1987, p.55), de que a leitura de um romance dependeria basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor e que a “construção estrutural” é que daria sustento ao enredo e à personagem. Nessa linha de raciocínio, pode-se afirmar que Osman Lins primou na construção de seu “retábulo”, da história que se propôs narrar, e que, através da criação literária, imortalizou Joana Carolina, santificada, aparentemente, pela voz popular, mas, efetivamente, por obra do autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Ana Luiza. Osman Lins: crítica e criação. São Paulo: Hucitec, 1987.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievisky. São Paulo: Forense Universitária, 2005.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CÂNDIDO, Antônio e outros. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987.
GAMA, Rinaldo. “Metáfora estrutural de Osman Lins alça novo vôo”. In: Entre Livros. São Paulo, Ediouro – Duetto, no.1, ISSN 1808-1010, 2006.
LINS, Osman. “Retábulo de Santa Joana Carolina”. In: BOSI, Alfredo - Org.  O Conto Brasileiro Contemporâneo. São Paulo:  Cultrix, 1975.
PAES, José Paulo. “Palavra feita vida”. In: LINS, Osman. Nove, novena: posfácio. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

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