Raquel Teles Yehezkel
HISTÓRIA,
LITERATURA E CAPITALISMO
em MEMORIAL DE AIRES, de Machado de Assis
Trabalho final, requisito da
disciplina “História, Literatura e Capitalismo”, ministrada pelo professor
doutor João Antônio de Paula, na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG.
Faculdade de Ciências Econômicas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 5 de julho de 2006
Memorial de Aires é o último romance de Machado de Assis. Foi escrito em forma de diário por um diplomata recém aposentado, o conselheiro José da Costa Marcondes Aires, protagonista de pouca ação, interessado, principalmente, em observar o comportamento de seus semelhantes.
A narrativa se passa no Rio de Janeiro, em fins do século XIX, especificamente entre janeiro de 1888, ano da Abolição dos escravos, e agosto de 1889, período que antecede a Proclamação da República - depois de o conselheiro ter passado boa parte de sua vida em serviços diplomáticos pelo mundo. A forma de diário permite a Machado de Assis escrever no estilo livre, repleto de digressões, que caracterizam sua fase realista.
A narrativa lenta e reflexiva - que tece considerações sobre a velhice e elogios às relações conjugais - pode ser considerada um “testamento” literário e existencial do autor. Vários traços autobiográficos já foram identificados pela crítica na obra. Machado deixa-se entrever tanto na figura do narrador Aires como na do casal Aguiar, que, como o autor, vive em harmonia, mas sofre pela a falta de filhos. Vê-se também no nome do livro, Memorial de Aires, as iniciais do autor: M. de A.
A obra
A poética das narrativas de Machado de Assis pode ser
dividida em duas fases. A primeira compreende suas obras da juventude, com
forte influência da estética romântica, como Ressurreição (1872), A
Mão e a Luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878). E a
segunda, marcada pelo amadurecimento do autor até chegar a fase realista de
obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba
(1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de
Aires (1908).
Em Memorial de Aires, Machado de Assis atinge o
ápice de sua preocupação com a ambientação e situações existenciais sutis: E
andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismo!, exclama Aires.
Alheio a essa discussão, tanto Aires quanto Machado de Assis seguem
interessados em investigar o caráter e a psicologia complexa das personagens.
O mesmo acontece em relação à poética dos contos de
Machado. Sua obra é considerada pela crítica - se não a melhor - dentre as
melhores do gênero na literatura brasileira. Seus contos abrangem, num espectro
amplo, desde conflitos da sociedade brasileira (vide a questão escravagista
estampada de forma crua e cruel em Pai contra Mãe, onde um caçador de
escravos, que precisa urgentemente de dinheiro por causa do nascimento de seu
filho, prende uma escrava fugitiva, grávida, que, ao ser presa, aborta o filho
do próprio dono) à conflitos de nível do indivíduo (vide o conflito do músico e
compositor de polcas famosas, protagonista de “O Homem Célebre”, em relação à
própria criação que considera por ele próprio “comezinha”).
Sobre a narrativa machadiana, Costa Lima fala de uma
“esterilidade” e de uma “impossibilidade”: a impossibilidade da realização
amorosa em sua completude, a impossibilidade da criação. A impossibilidade da
criação teria sua causa “na própria ingrata natureza” e na insatisfação do
público (que se contenta com o trivial).
Síntese do enredo
Memorial de Aires são as
memórias do velho diplomata Aires, no período de janeiro de 1888 a agosto de
1889, na cidade do Rio de Janeiro. Aposentado, de volta ao Rio de Janeiro, o
diplomata narra seus dias nesse período, tecendo análises sobre as pessoas e os
acontecimentos da sociedade que o cerca. O tema central gira em torno de
Fidélia, jovem viúva pela qual Aires se apaixona. Mas o romance não se realiza,
e, no decorrer do enredo, Aires desiste desse amor. Enquanto isto, Fidélia
conhece Tristão, afilhado do velho casal Aguiar. Os dois apaixonam-se, casam-se
e, finalmente, deixam o Brasil para viver em Portugal, onde vivem os pais de
Tristão e onde lhe espera uma carreira política.
O narrador
Narrador é o que há de mais importante em qualquer narrativa. É ele
quem dá as cartas ao leitor (...) a história a ser contada a ele pertence e é a
ele que cabe a decisão de encontrar a maneira mais adequada – ou mais ardilosa
– de apresentá-la ao leitor (Peixoto, 1998, p.133).
Em Memorial de Aires o narrador, também
personagem protagonista do enredo, conta sua história em primeira pessoa. Por
meio do conselheiro Aires, que em nenhum momento deixa de ser diplomata em suas
ações e idéias, Machado revela sua natureza conciliadora e seu espírito
observador. Toda a história, de certo sabor romanesco, é contada por um
narrador que diz: eu não amo a ênfase ou tudo se atenua assim neste
mundo, e ainda bem. Aires evita criticar as personagens e reserva-lhes
sempre um olhar complacente: eu não odeio nada e ninguém, perdono a
tutti, como na ópera.
Na tecitura do enredo, Aires fala diretamente ao leitor,
buscando trazê-lo para a narrativa, costume constante do narrador nas obras de
Machado: - Ah! Minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse a indagar onde param
os mortos, andaria o infinito e acabaria na eternidade, observam as pessoas
ao constatarem que Fidélia ia casar-se novamente. O conselheiro, sempre
comedido, chega à seguinte conclusão: Os mortos podem muito bem combater os
vivos, sem os vencer inteiramente. Assim, perdem-se, narrador e leitor, em
considerações, dúvidas e nos sofrimentos das personagens.
D. Cesária, que adora falar mal da vida alheia e odeia
tanto Fidélia quanto Tristão, aparece como contraponto para a figura
conciliadora do narrador, uma espécie de seu “outro eu”. Isto pode ser
detectado, por exemplo, quando ela lança algumas dúvidas sobre o caráter de
Tristão. Dúvidas que o narrador, embora discorde, não impede que transpareçam
na narração, deixando-se instalar a aura da ambigüidade.
Ao caráter difuso de Aires pode-se também relacionar o
episódio da abolição dos escravos, mas com a ressalva de que ali o narrador
expressa claramente de que lado se encontra. Machado, mestiço e discretamente
abolicionista, registra com simpatia, sempre usando as palavras atenuadas de
Aires, o momento da Abolição da Escravatura. Venha que é tempo. Ainda me
lembro do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação
de Lincoln (...), mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que
restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também
com os seus escravos. Contrariando aqueles que acusam Machado de Assis de
nunca ter se envolvido com a questão abolicionista, as palavras de Aires deixam seu testemunho
sobre a escravidão. As declarações convictas do diplomata não deixam dúvidas
quanto a seu envolvimento emocional com a questão: Enfim, lei. Nunca fui,
nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti
grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sansão da Regente.
(...) Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as
leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares,
escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da
Poesia. Mas logo o conselheiro atenua a emoção e retorna à sua vida de voyeur
/ flâneur: impassível perscrutador da vida alheia. Não há alegria
pública que valha uma boa alegria particular, dando o exemplo do casal
Aguiar que, em vez da Abolição, festeja o recebimento da carta do afilhado.
Esse modo de narrar foi
pejorativamente chamado por Sílvio Romero, contemporâneo do autor, de um
“perpétuo tartamudear”, reduzindo o estilo de Machado à simples resultante
biológica de sua gagueira, e sua obra à “conseqüência natural, mecânica e
patológica de uma deficiência orgânica e psíquica”.
O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser
notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua
índole psicológica indecisa. (...) Vê-se que aquele apalpa e tropeça, que sofre
de uma perturbação qualquer nos órgão da palavra (...).
Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retorce
tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos impressão de um
perpétuo tartamudear. Esse veso, (...) elevado a uma manifestação de graça e
humor, é apenas, repito, o resultado de uma lacuna dão romancista nos órgãos da
palavra (Romero, 1879).
No período em que a exaltação nacional e as cores locais
deveriam fornecer o tom às expressões culturais, Sílvio Romero estaria mais
interessado na construção de uma determinada mentalidade brasileira do que na
literatura. Machado considerava essa visão reducionista e buscava através de
suas reflexões “assegurar à nossa literatura o direito à universalidade das
matérias por oposição ao ponto de vista que só reconhece espírito nacional nas
obras que tratam de assunto local” (Schwarz, 1990, p. 9). Para Ferreira, a
proposta de Machado de Assis era a de “inserir a nossa literatura numa
dialética do local e do universal, demonstrando que o todo está nas partes e a
parte no todo” (1997, p. 248). Essa subversão à estética de seu tempo, segundo
Silviano Santiago
(...) não é um jogo gratuito de cunho nacionalista estreito, (...)
mas compreensão de que, apesar de se produzir uma obra culturalmente dependente,
pode-se dar o salto por cima das imitações e das sínteses enciclopédicas
etnocêntricas e contribuir com algo original (1982, p. 22).
Sílvio Romero não conseguia compreender um narrador diferente dos
que estava acostumado nos romances naturalistas e realistas de sua época,
preocupados em representar, quase sempre denunciando, uma realidade que, para
Machado, sempre se apresentava como, no mínimo, ambígüa (1998, p.136).
Em oposição a Sílvio Romero, Roberto Schwarz ressalta
que o “tartamudear” e a “volubilidade” do narrador em Machado é sua marca
registrada e também a marca de uma modernidade que ele antecipou. Por ser
volúvel e “tartamudear”, o narrador machadiano “conduz-nos a uma espécie de
labirinto de que desejamos encontrar a saída sempre negaceada” (Peixoto, 1998).
Nesse labirinto reina o prazer de se perder.
A narrativa do conselheiro Aires é retardada por
digressões que tornam o ritmo lento, assim o leitor pode “ruminar” as questões
levantadas por personagens complexas e ambíguas, mesmo que, muitas vezes,
possam parecer superficiais. As análises do velho diplomata assumem um papel
preponderante: análises psicológicas na sua maioria, mas também análises de
questões sociais, políticas e históricas. Veja a questão escravagista (o pai de
Fidélia alforria seus escravos para evitar que a abolição o faça, defendendo a
idéia de que o ato de alforriar fosse uma questão particular e não pública), a
própria abolição dos escravos ou os problemas do reinado de D. Pedro II (ver citações do Memorial em ...), tudo, no
dizer de Sérgio Peixoto, “não mero pano de fundo, mas o próprio palco (nunca
bem iluminado) em que transitam os seres de Machado” (Peixoto, 1998).
Personagens
“A personagem é um
ser de papel, e não um indivíduo de carne e osso” (Roland Barthes).
A personagem, esse ser fictício
construído por palavras, é a sustentação viva da ação. Há duas classificações
básicas para esse elemento da narrativa: personagens planas ou esféricas.
Quando planas, caracterizam-se por traços externos e, por isso, são destituídas
de profundidade. Seus traços são delineados logo de início pelo narrador e
normalmente não evoluem, portanto não há surpresas em suas ações. Em Memorial
de Aires, o casal Aguiar, Rita, D. Cesária e o desembargador são exemplos
desse tipo de personagem.
Quando esféricas, as personagens
têm densidade psicológica, uma vida interior complexa, surpreendendo
freqüentemente o leitor. Por meio de seus próprios gestos e atitudes, e não
através da interferência direta do narrador, vão sendo delineadas aos poucos
durante a leitura da obra ou, em alguns casos, somente após o final da leitura
(vide Capitu como exemplo). Por sua caracterização complexa, as personagens
esféricas, normalmente, figuram entre as personagens centrais da narrativa.
Temos como exemplo o próprio Aires, Fidélia e Tristão.
Considerações sobre as personagens da narrativa
Segundo Costa Lima, “como Machado vivia em um meio
provinciano, sob um Estado clientelístico, precisou desenvolver uma técnica
(...) que temos chamado a ‘técnica do palimpsesto’, isto é, formada por duas
camadas, uma aparentemente cordata, a esconder da tinta visível a virulência
crítica, deposta na segunda” (Costa Lima, 1984).
Esta técnica pode ser detectada com certa facilidade nas
relações que o autor desenvolve em Memorial de Aires. No romance urbano
até então, (vide José de Alencar como exemplo) o enredo gira em torno do tema
romântico do casamento e do dinheiro. A mocinha rica sempre se casa com o homem
rico. Se um dos dois é pobre, torna-se ou revela-se rico por algum estratagema.
“A sexualidade é embelezada pelo amor aparentemente desinteressado, e a ficção
se resolve conforme o senso comum” (Brandão, 1996). Já em Memorial de Aires,
um texto aparentemente inocente, o herói romântico é substituído por
personagens comuns, mais próximos da realidade do dia-a-dia: A cara não me era estranha, sem atinar quem
fosse. E bonita, e gentilíssima, como ouvi dizer de outras em Roma. A
questão romântica do casamento e do dinheiro, que também se aparenta
corriqueira, já não se resolve de forma tão rósea. Também diferentemente do
romantismo -, onde as relações da sociedade patriarcal com o casamento e o
dinheiro se resolvem dentro do esperado -, as soluções dos dilemas amorosos em Memorial
de Aires reservam-nos constantes surpresas, apontando para sujeitos
imprevisíveis e fragmentados, de uma inteiridade apenas imaginária. Como, por
exemplo, o interesse amoroso despertado por Fidélia em Aires, que parecia ter
certa força, mas se arrefece no decorrer da narrativa. Também as incongruências da vida afetiva de
Fidélia, que, apesar de parecer uma jovem pacata, casa-se contra a vontade dos
pais (e aqui não é Verona, como observa Aires), passando a ser ignorada por
esses. Após presumirmos que seria viúva por toda a vida, em sinal de fidelidade
ao “amor verdadeiro”, apaixona-se pelo jovem Tristão, e, para mostrar que o
amor entre ambos é desinteressado, abrem mão da herança, deixando a fazenda,
herdada por Fidélia, para os escravos. Finalmente, decepcionando “a gente
Aguiar” (e a gente, leitores), o jovem casal que, supostamente, deveria cuidar
dos “pais adotivos”, muda-se em definitivo para Portugal, onde uma carreira
política promissora aguardaria o jovem Tristão.
Fidélia - O próprio nome
da personagem já sugere alguma relação com a questão da fidelidade que será
levantada pelo narrador ao longo do enredo ao “discutir” o estado de viuvez de
Fidélia bem como sua opção pela solidão (pelo menos temporária). O narrador
discute e fantasia sobre essa mulher: um tipo amado e querido por quase todos.
Nos intervalos, encena-se, dramatiza-se algo, sem se saber exatamente o quê, já
que Fidélia não se deixa amar nem conhecer: pasmavam do celibato da moça que
lhes parecia sem explicação. Numa representação ambígua, sua personalidade
é posta em julgamento, levantando suspeitas, de forma implícita ou não, se ela
é ou não fiel: aos pais que amava, mas que foi capaz de deixar; ao falecido
marido, a quem jurou amor eterno, mas acabou se casando novamente; ao casal
Aguiar, que a teve como filha, mas que abandonou em nome do novo amor.
Segundo Ruth Brandão, as mulheres
inatingíveis em Machado não se parecem com as do romantismo que perpetuam a
idealização da mulher na sua plenitude imaginária. “São antes um indizível, um
resíduo que passam pelo feminino e causam o texto” (Brandão, 1996). Fidélia,
Flora de Esaú e Jacó, Capitu de Dom Casmurro, relacionam-se ao indizível, à
impossibilidade de realização e da completude una, representando a visão de um
mundo fragmentado e imperfeito. Talvez a isso a crítica tenha chamado de
“pessimismo” em Machado.
O casal Aguiar - Escrita
por Machado após a morte de sua esposa, Maria Carolina, a obra traz, na terna
figura de D. Carmo, um retrato nostálgico da companheira perdida. Segundo
Frederico Barbosa “a coincidência dos nomes – Aguiar e Assis, Carmo e Carolina
-, o carinho extremado, a infertilidade, tudo leva a crer que o casal ficcional
seja uma representação pouco disfarçada do casal Assis” (Barbosa, 2003. in:
Machado de Assis, Memorial de Aires, Biblioteca Universitária).
Tristão - Afilhado que o
casal Aguiar criou como filho, muda-se com os pais para Portugal, passando anos
sem mandar notícias. É o seu retorno, porém, que dá um novo rumo à narrativa,
pois sua presença é responsável por mudanças na vida do casal Aguiar, bem como na
da viúva Noronha que, por causa dele, desiste da solidão.
O tempo
Segundo Fiorin, “o tempo do discurso é sempre uma criação da
linguagem” (2003, p.163). Para Benveniste, “o tempo lingüístico se difere do
tempo cronológico e do tempo físico. Sua singularidade é que ele está ligado ao
exercício da fala, pois tem seu tempo no presente do instante da fala”, ou
seja, do discurso enunciado (1974, p.3).
Ainda utilizando termos de Fiorin e Benveniste, respectivamente,
poderíamos dizer que a feitura de “Memorial de Aires” por Machado ilustra bem
seu modo de fazer poético: uma “realização lingüística concreta”, “por um ato
individual de utilização da língua na escrita”. Nesse contexto, o tempo em
Machado de Assis está intrinsecamente ligado ao tempo psicológico do narrador,
à forma como ele enuncia suas divagações e considerações em seu discurso.
Aposentado, o diplomata-narrador, insiste no fato de ter
tempo de sobra para ir escrevendo seu diário. Assim, o tempo psicológico
prevalece na narrativa, e, enquanto os fatos se desenrolam cronologicamente de
forma linear e rápida, Aires vai registrando suas impressões sem pressa alguma.
De forma difusa, devaneia - ou tartamudeia como queria Sílvio Romero - tornando
o tempo fugaz e inapreensível. O tempo é um tecido invisível em que se pode
bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, já sentenciara
Aires em “Esaú e Jacó”. Além de uma
personagem fundada na verossimilhança realista, Aires denota a idéia de um
tempo que passa e tudo muda, apesar do desejo de permanência e de imortalidade.
A quem pensar que o tempo da obra é cronológico apenas
por que os fatos se desenrolam com a marca de um calendário, é bom avisar que
as marcas enganam, pois o narrador, que parece dar início a enunciação em 9 de
Janeiro de 1888, começa dizendo que, naquele dia, exatamente há um ano, havia
voltado definitivamente da Europa e, aí então, salta para aquele dia. Assim,
não podemos precisar seguramente o tempo da narrativa que se movimenta conforme
as considerações do narrador; em seu tempo psicológico, uma vez que a todo
momento são trazidas à tona lembranças do passado que se misturam ao presente,
em constantes vai-e-vem de sua memória e de suas conjecturas. Da mesma forma que o narrador optou iniciar a
narrativa com ambigüidade do tempo,
assim também achou por bem terminá-la: Sem data.
Não podemos
deixar de considerar paralelamente à questão do tempo a questão da velhice. Já
no começo, em sua visita em companhia da irmã ao túmulo da família, o narrador
comenta sobre o jazido, comparando-o a uma pessoa: Achei-o novo demais, isso
sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu
creio que um velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do
tempo, que tudo consome. Mais à frente, anota: ...se os mortos vão
depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos... Viva a mocidade!,
trabalhando ao longo de toda a narrativa com contraposições entre juventude e
velhice, perenidade e permanência. Nessa mesma concepção, finaliza a narrativa
de forma vaga e imprecisa dizendo sobre o velho casal Aguiar: ...vi-lhes no
rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que
me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a
saudade de si mesmos.
O espaço
Essa é a categoria
da narrativa por onde circulam as personagens e onde se desenvolve a ação.
A cidade do Rio de Janeiro é o campo privilegiado para
as reflexões do autor em todas as suas narrativas. Como o flâneur de
Walter Benjamim, mantém com a cidade uma relação amorosa, pois lhe percebe os
detalhes, lhe confere um significado que vai além da aparência, em devaneios
que faz com que a cidade seja vista como um prolongamento de si mesmo. Conhecer
a cidade acaba significando conhecer a si próprio, pois as imagens que se
formam no inconsciente são relacionadas com a experiência vivida.
No caso de Machado de Assis, sua relação com o Rio de
Janeiro é acentuada e muito bem percebida. Machado passou por todas as
instâncias dessa cidade, desde a residência humilde no Morro do Livramento até
a derradeira e confortável casa no Cosme Velho, bairro nobre da época. O
narrador faz perambular seus pensamentos pelos cenários dessa cidade –
Flamengo, Catete, Andaraí, etc -, de forma que, como num labirinto, fazem com que
o leitor, perdido em sua diversidade, mergulhe no texto em busca de seus
significados.
A obra e a questão da verossimilhança
Nada impede que as circunstâncias em que o narrador
integra a narrativa sejam ficcionais. Ao contrário da informação da imprensa,
que se limita a relatar fatos verificáveis da realidade externa, a força de
convicção da narrativa não reside na veracidade dos fatos narrados. A verdade
da narrativa é de outra natureza e depende muito mais da construção, da
tecitura da narrativa enquanto “peça” que se encaixa ou não na experiência
coletiva.
Segundo Platão, a narrativa, como qualquer ficção, é um
simulacro da verdade, que, por sua vez, já é um simulacro defeituoso da Idéia.
A narrativa, enquanto simulacro do simulacro, é uma mentira; e o segredo da boa
mentira estaria no fato de haver “circunstâncias” que a vinculem à
“experiência” e que a tornem verdadeira enquanto representação bem-sucedida
desta experiência. Assim sendo, o sucesso da narrativa não depende de questões
como verdadeiro ou falso, mas da sua qualidade estética, ou seja, de fazer crer
ao leitor de que aquela experiência é possível, mesmo que ficcional. Seria do
caso das particularidades da narrativa poderem ser incorporadas numa totalidade
que Benjamim prefere chamar de “experiência”. A própria narrativa traz consigo
as circunstâncias em que foi contada, deixando claro que a “coisa narrada” não
é um fato isolado, mas um fato integrado numa determinada experiência humana.
A narrativa mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retira-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como
a mão do oleiro na argila do vaso (Bejamim, 1985, p. 205).
É a vocação de Machado de Assis para criar com maestria
espaços, cheiros, sons, sentidos, vozes e personagens verossímeis,
reconhecíveis e semelhantes às experiências de vida de qualquer um de nós, que
torna sua obra tão real e atual.
Polifonia e intertextualidade
Ducrot inspirou-se em Baktin que usou o termo “polifonia” para
designar a pluraridade de vozes que atuam em determinados textos. Segundo
Baktin, tais vozes “falam” simultaneamente sem que nenhuma delas seja
preponderante e julguem outras. Já Ducrot vai se interessar de perto pela
polêmica que estas diferentes vozes podem criar dentro de um mesmo enunciado,
assim como também pela maior ou menor força de umas sobre as outras.
(Polifonia: Ida Machado, 1996, p.137)
Como síntese, chamamos de intertextualidade as “influências”
registradas nas obras; ou o “rótulo” sob o qual se encontram todas as relações
com escritos anteriores que se possam observar numa obra, como, por exemplo, a
imitação de modelos em diversos graus, atingindo o assunto, o tema e o
exercício da paródia. (Intertextualidade: Mendes, 1994, p. 140). Preocupação,
no discurso, com citações de fontes. Citações de outros textos, de outros
autores.
Segundo a perspectiva de Walter Benjamim, a citação não é
apenas uma referência a outro texto, mas “uma referência a um texto de um
passado mais ou menos remoto”. A citação, além de servir de elo entre presente
e passado, evidencia ao mesmo tempo como um autor se posiciona com relação a
esse passado. Citar é rememorar o passado a partir do ponto de vista específico
de um determinado presente.
A síntese inesperada entre o fragmento citado e o texto presente é
um indício para o fato de este último não ser inteiramente novo, assim como o
texto citado não ser ‘coisa do passado’. Através da citação, o texto do passado
dá provas de sua presença permanente, que não é o resultado de algum esforço de
memória, o fragmento citado é a materialização de um parentesco subliminar, um
vestígio, que sempre existiu e preexistiu ao autor do texto. (...) Dentro desta
totalidade, a distância temporal perde seu caráter negativo, no sentido de
separar dois textos, e aumenta o efeito surpreendente provocado pela
aproximação repentina e inesperada através da citação. A citação livre do
passado pressupõe que o presente não seja considerado como resultado de um
determinado passado, mas como lugar autônomo de sua permanente reavaliação
(Otte, 1996, p. 219-220).
Memorial de Aires está
repleto de diálogos do narrador com outras obras e com outros autores. São as
vozes do passando tomando seu lugar no presente, transformando a obra em que se
insere:
·
Fui à
minha pequena estante e tirei o livro de Fausto.
Aires refere-se ao drama alemão de Goethe que baseia-se na lenda de um homem
que vende sua alma ao diabo em troca de riquezas e da eterna juventude,
comparando sua atração pela jovem viúva Noronha.
·
I can give not what men call love. Aires se utiliza do verso de Shelly, um dos
primeiros poetas românticos ingleses, para falar da impossibilidade de
realização de seu amor por Fidélia. Logo a seguir cita Thackeray, um romancista
inglês que, como ele, ridicularizava os vícios de sua sociedade contemporânea.
·
Aires
expõe seu ponto de vista sobre a atualidade e a eternidade dos dizeres
eclesiásticos que, paradoxalmente, cantam a efemeridade de tudo. Se eu não
tivesse os olhos adoentados dava-me a compor outro Eclesiastes, já à
moderna, posto nada deva haver moderno
depois daquele livro.
Memorial de Aires também
dialoga com a obra do próprio autor. O narrador, conselheiro Aires, é também o
narrador de “Esaú e Jacó”: em ambos enredos, fino observador das sutilezas da
psicologia humana. Na introdução do Memorial de Aires lemos a
“Advertência” de Machado de Assis: Quem me leu Esaú e Jacó talvez
reconheça estas palavras do prefácio: “Nos lazares do ofício escrevia o Memorial,
que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para
matar o tempo da barca de Petrópolis.” Referia-me ao conselheiro Aires. (...)
A ironia
A ironia é uma polifonia moderada, pois um único
enunciado possibilita o reconhecimento de duas vozes, ou seja, dois
enunciadores, onde um parece assumir o que diz e outro que não assume (o mais
importante deles) e que corresponde à intenção do locutor (Fiorin, 2003).
O exemplo tradicional de ironia é dado por Sócrates. O
método socrático consiste em destruir qualquer opinião isolada por colocá-la em
contato com um contexto mais amplo ou estranho.
Duarte recorre a Lausberg ao definir ironia como a
utilização do vocábulo com a convicção de que o receptor reconhecerá a
incredibilidade desse vocabulário. O ponto de vista defendido pelo orador é,
assim, reforçado, e, como resultado, as palavras irônicas são compreendidas num
sentido que é o contrário ao seu sentido próprio.
Já a intenção da ironia humoresque ou de segundo
grau, ainda conforme Duarte, não seria o oposto, ou dizer algo sem realmente
dizê-lo, mas manter a ambigüidade, o caráter lúdico, fluído e instável da
linguagem que o constitui e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de
um sentido claro e definitivo.
Ironizar é distanciar-se, poder levantar questões, tornar presença
em ausência, introduzir no saber o relevo da perspectiva. Ter flexibilidade,
consciência e atenção ao real, prevenindo-se contra o desencanto, através da
arte de examinar distanciadamente, sem se envolver com o fanatismo
exclusivista.
Assim, a ironia pode ser uma arma em um ataque satírico, uma
cortina de fumaça que encobre uma retirada, um estratagema para virar o mundo
ou alguém às avessas, ou um estratagema que permite ao sujeito usar a linguagem
e conviver harmoniosamente com sua incompletude (Duarte, 1991, p. 92).
Foi nesta forma de ironia que Machado de Assis se
esmerou, revelando-se especialista. D. Carmo é das poucas pessoas a quem
nunca ouvi dizer que são “doidas por morangos”, nem que “morrem por ouvir
Morzart”, diz Aires ironizando o comportamento afetado e superficial da
elite de seu tempo.
Metalinguagem
A metalinguagem é o nome dado ao recurso lingüístico que
permite ao autor, na própria obra, falar do fazer poético, das particularidades
de recursos criativos.
Auto-irônico, Aires, critica seu fazer poético, seu
método narrativo: Não há nada pior que a gente vadia, - ou aponsentada, que
é a mesma coisa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há
papel que baste.
Sempre me sucedeu apreciar a maneira por que os
caracteres se exprimem e se compõem, e muita vez não me desgosta o arranjo dos
próprios fatos. Gosto de ver e antever, e também de concluir.
Comentários
A independência de Machado de Assis em relação às “modas
literárias” não se deve apenas a um alheamento em relação a estilos e doutrinas
consagradas na época. Segundo Guelfi, mais do que isso, “o estilo literário de
Machado de Assis consiste numa exploração sistemática da contradição, como
estratégia de desconstrução dos códigos literários, filosóficos e científicos
vigentes”. Ele não se mantém alheio a modismos, mas se utiliza deles para
desmascarar os jogos de dominação e poder que estão por trás dos discursos
consagrados pelas classes e grupos dominantes.
É do interior desses discursos das elites, explorando a
linguagem elegante, estabelecida pelos padrões do bom-senso e do bom-gosto, que
este ficcionista vai rasurar, com ironia, os códigos de significação
privilegiados do sistema social brasileiro, subvertendo os hábitos requintados
da burguesia e os esquemas lógicos do pensamento científico. Em outras palavras,
a crítica à sociedade burguesa não se limita a descrições superficiais de
costumes ou exaustivos inventários de mazelas públicas e privadas, mas se
concentra numa exposição de como funcionam os próprios esquemas de dominação
dessa burguesia (Guelfi, 1999).
Aperfeiçoando a cada obra a técnica da ironia, sua
principal arma na exploração das contradições sociais, Machado não se põe na
posição ingênua de um autor que deseja melhorar a sociedade, como se ocupasse
um lugar neutro, de fora. Ao contrário, assume a linguagem das elites,
colocando-se como parte integrante do mesmo sistema que satiriza. Dessa forma
rompe com o protótipo do escritor realista-naturalista que, do alto de um saber
ilustrado, se sente responsável pelo progresso científico e moral da sociedade
como um todo.
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