terça-feira, 9 de julho de 2013

HISTÓRIA, LITERATURA E CAPITALISMO EM "MEMORIAL DE AIRES"



Raquel Teles Yehezkel







HISTÓRIA, LITERATURA E CAPITALISMO
em MEMORIAL DE AIRES, de Machado de Assis




Trabalho final, requisito da disciplina “História, Literatura e Capitalismo”, ministrada pelo professor doutor João Antônio de Paula, na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG.






Faculdade de Ciências Econômicas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 5 de julho de 2006


 

Memorial de Aires é o último romance de Machado de Assis. Foi escrito em forma de diário por um diplomata recém aposentado, o conselheiro José da Costa Marcondes Aires, protagonista de pouca ação, interessado, principalmente, em observar o comportamento de seus semelhantes.

A narrativa se passa no Rio de Janeiro, em fins do século XIX, especificamente entre janeiro de 1888, ano da Abolição dos escravos, e agosto de 1889, período que antecede a Proclamação da República - depois de o conselheiro ter passado boa parte de sua vida em serviços diplomáticos pelo mundo. A forma de diário permite a Machado de Assis escrever no estilo livre, repleto de digressões, que caracterizam sua fase realista.

A narrativa lenta e reflexiva - que tece considerações sobre a velhice e elogios às relações conjugais - pode ser considerada um “testamento” literário e existencial do autor. Vários traços autobiográficos já foram identificados pela crítica na obra. Machado deixa-se entrever tanto na figura do narrador Aires como na do casal Aguiar, que, como o autor, vive em harmonia, mas sofre pela a falta de filhos. Vê-se também no nome do livro, Memorial de Aires, as iniciais do autor: M. de A.


A obra


A poética das narrativas de Machado de Assis pode ser dividida em duas fases. A primeira compreende suas obras da juventude, com forte influência da estética romântica, como Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878). E a segunda, marcada pelo amadurecimento do autor até chegar a fase realista de obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
Em Memorial de Aires, Machado de Assis atinge o ápice de sua preocupação com a ambientação e situações existenciais sutis: E andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismo!, exclama Aires. Alheio a essa discussão, tanto Aires quanto Machado de Assis seguem interessados em investigar o caráter e a psicologia complexa das personagens.
O mesmo acontece em relação à poética dos contos de Machado. Sua obra é considerada pela crítica - se não a melhor - dentre as melhores do gênero na literatura brasileira. Seus contos abrangem, num espectro amplo, desde conflitos da sociedade brasileira (vide a questão escravagista estampada de forma crua e cruel em Pai contra Mãe, onde um caçador de escravos, que precisa urgentemente de dinheiro por causa do nascimento de seu filho, prende uma escrava fugitiva, grávida, que, ao ser presa, aborta o filho do próprio dono) à conflitos de nível do indivíduo (vide o conflito do músico e compositor de polcas famosas, protagonista de “O Homem Célebre”, em relação à própria criação que considera por ele próprio “comezinha”).
Sobre a narrativa machadiana, Costa Lima fala de uma “esterilidade” e de uma “impossibilidade”: a impossibilidade da realização amorosa em sua completude, a impossibilidade da criação. A impossibilidade da criação teria sua causa “na própria ingrata natureza” e na insatisfação do público (que se contenta com o trivial).

Síntese do enredo


Memorial de Aires são as memórias do velho diplomata Aires, no período de janeiro de 1888 a agosto de 1889, na cidade do Rio de Janeiro. Aposentado, de volta ao Rio de Janeiro, o diplomata narra seus dias nesse período, tecendo análises sobre as pessoas e os acontecimentos da sociedade que o cerca. O tema central gira em torno de Fidélia, jovem viúva pela qual Aires se apaixona. Mas o romance não se realiza, e, no decorrer do enredo, Aires desiste desse amor. Enquanto isto, Fidélia conhece Tristão, afilhado do velho casal Aguiar. Os dois apaixonam-se, casam-se e, finalmente, deixam o Brasil para viver em Portugal, onde vivem os pais de Tristão e onde lhe espera uma carreira política.

O narrador


Narrador é o que há de mais importante em qualquer narrativa. É ele quem dá as cartas ao leitor (...) a história a ser contada a ele pertence e é a ele que cabe a decisão de encontrar a maneira mais adequada – ou mais ardilosa – de apresentá-la ao leitor (Peixoto, 1998, p.133).

Em Memorial de Aires o narrador, também personagem protagonista do enredo, conta sua história em primeira pessoa. Por meio do conselheiro Aires, que em nenhum momento deixa de ser diplomata em suas ações e idéias, Machado revela sua natureza conciliadora e seu espírito observador. Toda a história, de certo sabor romanesco, é contada por um narrador que diz: eu não amo a ênfase ou tudo se atenua assim neste mundo, e ainda bem. Aires evita criticar as personagens e reserva-lhes sempre um olhar complacente: eu não odeio nada e ninguém, perdono a tutti, como na ópera.
Na tecitura do enredo, Aires fala diretamente ao leitor, buscando trazê-lo para a narrativa, costume constante do narrador nas obras de Machado: - Ah! Minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse a indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria na eternidade, observam as pessoas ao constatarem que Fidélia ia casar-se novamente. O conselheiro, sempre comedido, chega à seguinte conclusão: Os mortos podem muito bem combater os vivos, sem os vencer inteiramente. Assim, perdem-se, narrador e leitor, em considerações, dúvidas e nos sofrimentos das personagens.
D. Cesária, que adora falar mal da vida alheia e odeia tanto Fidélia quanto Tristão, aparece como contraponto para a figura conciliadora do narrador, uma espécie de seu “outro eu”. Isto pode ser detectado, por exemplo, quando ela lança algumas dúvidas sobre o caráter de Tristão. Dúvidas que o narrador, embora discorde, não impede que transpareçam na narração, deixando-se instalar a aura da ambigüidade.
Ao caráter difuso de Aires pode-se também relacionar o episódio da abolição dos escravos, mas com a ressalva de que ali o narrador expressa claramente de que lado se encontra. Machado, mestiço e discretamente abolicionista, registra com simpatia, sempre usando as palavras atenuadas de Aires, o momento da Abolição da Escravatura. Venha que é tempo. Ainda me lembro do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln (...), mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos. Contrariando aqueles que acusam Machado de Assis de nunca ter se envolvido com a questão abolicionista,  as palavras de Aires deixam seu testemunho sobre a escravidão. As declarações convictas do diplomata não deixam dúvidas quanto a seu envolvimento emocional com a questão: Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sansão da Regente. (...) Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da Poesia. Mas logo o conselheiro atenua a emoção e retorna à sua vida de voyeur / flâneur: impassível perscrutador da vida alheia. Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular, dando o exemplo do casal Aguiar que, em vez da Abolição, festeja o recebimento da carta do afilhado.
Esse modo de narrar foi pejorativamente chamado por Sílvio Romero, contemporâneo do autor, de um “perpétuo tartamudear”, reduzindo o estilo de Machado à simples resultante biológica de sua gagueira, e sua obra à “conseqüência natural, mecânica e patológica de uma deficiência orgânica e psíquica”.

O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. (...) Vê-se que aquele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgão da palavra (...).
Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos impressão de um perpétuo tartamudear. Esse veso, (...) elevado a uma manifestação de graça e humor, é apenas, repito, o resultado de uma lacuna dão romancista nos órgãos da palavra (Romero, 1879).

No período em que a exaltação nacional e as cores locais deveriam fornecer o tom às expressões culturais, Sílvio Romero estaria mais interessado na construção de uma determinada mentalidade brasileira do que na literatura. Machado considerava essa visão reducionista e buscava através de suas reflexões “assegurar à nossa literatura o direito à universalidade das matérias por oposição ao ponto de vista que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local” (Schwarz, 1990, p. 9). Para Ferreira, a proposta de Machado de Assis era a de “inserir a nossa literatura numa dialética do local e do universal, demonstrando que o todo está nas partes e a parte no todo” (1997, p. 248). Essa subversão à estética de seu tempo, segundo Silviano Santiago

(...) não é um jogo gratuito de cunho nacionalista estreito, (...) mas compreensão de que, apesar de se produzir uma obra culturalmente dependente, pode-se dar o salto por cima das imitações e das sínteses enciclopédicas etnocêntricas e contribuir com algo original (1982, p. 22).
Sílvio Romero não conseguia compreender um narrador diferente dos que estava acostumado nos romances naturalistas e realistas de sua época, preocupados em representar, quase sempre denunciando, uma realidade que, para Machado, sempre se apresentava como, no mínimo, ambígüa (1998, p.136).

Em oposição a Sílvio Romero, Roberto Schwarz ressalta que o “tartamudear” e a “volubilidade” do narrador em Machado é sua marca registrada e também a marca de uma modernidade que ele antecipou. Por ser volúvel e “tartamudear”, o narrador machadiano “conduz-nos a uma espécie de labirinto de que desejamos encontrar a saída sempre negaceada” (Peixoto, 1998). Nesse labirinto reina o prazer de se perder.
A narrativa do conselheiro Aires é retardada por digressões que tornam o ritmo lento, assim o leitor pode “ruminar” as questões levantadas por personagens complexas e ambíguas, mesmo que, muitas vezes, possam parecer superficiais. As análises do velho diplomata assumem um papel preponderante: análises psicológicas na sua maioria, mas também análises de questões sociais, políticas e históricas. Veja a questão escravagista (o pai de Fidélia alforria seus escravos para evitar que a abolição o faça, defendendo a idéia de que o ato de alforriar fosse uma questão particular e não pública), a própria abolição dos escravos ou os problemas do reinado de D. Pedro II (ver citações do Memorial em ...), tudo, no dizer de Sérgio Peixoto, “não mero pano de fundo, mas o próprio palco (nunca bem iluminado) em que transitam os seres de Machado” (Peixoto, 1998).

Personagens


            “A personagem é um ser de papel, e não um indivíduo de carne e osso” (Roland Barthes).
            A personagem, esse ser fictício construído por palavras, é a sustentação viva da ação. Há duas classificações básicas para esse elemento da narrativa: personagens planas ou esféricas. Quando planas, caracterizam-se por traços externos e, por isso, são destituídas de profundidade. Seus traços são delineados logo de início pelo narrador e normalmente não evoluem, portanto não há surpresas em suas ações. Em Memorial de Aires, o casal Aguiar, Rita, D. Cesária e o desembargador são exemplos desse tipo de personagem.
Quando esféricas, as personagens têm densidade psicológica, uma vida interior complexa, surpreendendo freqüentemente o leitor. Por meio de seus próprios gestos e atitudes, e não através da interferência direta do narrador, vão sendo delineadas aos poucos durante a leitura da obra ou, em alguns casos, somente após o final da leitura (vide Capitu como exemplo). Por sua caracterização complexa, as personagens esféricas, normalmente, figuram entre as personagens centrais da narrativa. Temos como exemplo o próprio Aires, Fidélia e Tristão.

Considerações sobre as personagens da narrativa

Segundo Costa Lima, “como Machado vivia em um meio provinciano, sob um Estado clientelístico, precisou desenvolver uma técnica (...) que temos chamado a ‘técnica do palimpsesto’, isto é, formada por duas camadas, uma aparentemente cordata, a esconder da tinta visível a virulência crítica, deposta na segunda” (Costa Lima, 1984).
Esta técnica pode ser detectada com certa facilidade nas relações que o autor desenvolve em Memorial de Aires. No romance urbano até então, (vide José de Alencar como exemplo) o enredo gira em torno do tema romântico do casamento e do dinheiro. A mocinha rica sempre se casa com o homem rico. Se um dos dois é pobre, torna-se ou revela-se rico por algum estratagema. “A sexualidade é embelezada pelo amor aparentemente desinteressado, e a ficção se resolve conforme o senso comum” (Brandão, 1996). Já em Memorial de Aires, um texto aparentemente inocente, o herói romântico é substituído por personagens comuns, mais próximos da realidade do dia-a-dia: A  cara não me era estranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilíssima, como ouvi dizer de outras em Roma. A questão romântica do casamento e do dinheiro, que também se aparenta corriqueira, já não se resolve de forma tão rósea. Também diferentemente do romantismo -, onde as relações da sociedade patriarcal com o casamento e o dinheiro se resolvem dentro do esperado -, as soluções dos dilemas amorosos em Memorial de Aires reservam-nos constantes surpresas, apontando para sujeitos imprevisíveis e fragmentados, de uma inteiridade apenas imaginária. Como, por exemplo, o interesse amoroso despertado por Fidélia em Aires, que parecia ter certa força, mas se arrefece no decorrer da narrativa.  Também as incongruências da vida afetiva de Fidélia, que, apesar de parecer uma jovem pacata, casa-se contra a vontade dos pais (e aqui não é Verona, como observa Aires), passando a ser ignorada por esses. Após presumirmos que seria viúva por toda a vida, em sinal de fidelidade ao “amor verdadeiro”, apaixona-se pelo jovem Tristão, e, para mostrar que o amor entre ambos é desinteressado, abrem mão da herança, deixando a fazenda, herdada por Fidélia, para os escravos. Finalmente, decepcionando “a gente Aguiar” (e a gente, leitores), o jovem casal que, supostamente, deveria cuidar dos “pais adotivos”, muda-se em definitivo para Portugal, onde uma carreira política promissora aguardaria o jovem Tristão.
Fidélia - O próprio nome da personagem já sugere alguma relação com a questão da fidelidade que será levantada pelo narrador ao longo do enredo ao “discutir” o estado de viuvez de Fidélia bem como sua opção pela solidão (pelo menos temporária). O narrador discute e fantasia sobre essa mulher: um tipo amado e querido por quase todos. Nos intervalos, encena-se, dramatiza-se algo, sem se saber exatamente o quê, já que Fidélia não se deixa amar nem conhecer: pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. Numa representação ambígua, sua personalidade é posta em julgamento, levantando suspeitas, de forma implícita ou não, se ela é ou não fiel: aos pais que amava, mas que foi capaz de deixar; ao falecido marido, a quem jurou amor eterno, mas acabou se casando novamente; ao casal Aguiar, que a teve como filha, mas que abandonou em nome do novo amor.
Segundo Ruth Brandão, as mulheres inatingíveis em Machado não se parecem com as do romantismo que perpetuam a idealização da mulher na sua plenitude imaginária. “São antes um indizível, um resíduo que passam pelo feminino e causam o texto” (Brandão, 1996). Fidélia, Flora de Esaú e Jacó, Capitu de Dom Casmurro, relacionam-se ao indizível, à impossibilidade de realização e da completude una, representando a visão de um mundo fragmentado e imperfeito. Talvez a isso a crítica tenha chamado de “pessimismo” em Machado.
O casal Aguiar - Escrita por Machado após a morte de sua esposa, Maria Carolina, a obra traz, na terna figura de D. Carmo, um retrato nostálgico da companheira perdida. Segundo Frederico Barbosa “a coincidência dos nomes – Aguiar e Assis, Carmo e Carolina -, o carinho extremado, a infertilidade, tudo leva a crer que o casal ficcional seja uma representação pouco disfarçada do casal Assis” (Barbosa, 2003. in: Machado de Assis, Memorial de Aires, Biblioteca Universitária).
Tristão - Afilhado que o casal Aguiar criou como filho, muda-se com os pais para Portugal, passando anos sem mandar notícias. É o seu retorno, porém, que dá um novo rumo à narrativa, pois sua presença é responsável por mudanças na vida do casal Aguiar, bem como na da viúva Noronha que, por causa dele, desiste da solidão.

O tempo
Segundo Fiorin, “o tempo do discurso é sempre uma criação da linguagem” (2003, p.163). Para Benveniste, “o tempo lingüístico se difere do tempo cronológico e do tempo físico. Sua singularidade é que ele está ligado ao exercício da fala, pois tem seu tempo no presente do instante da fala”, ou seja, do discurso enunciado (1974, p.3).
Ainda utilizando termos de Fiorin e Benveniste, respectivamente, poderíamos dizer que a feitura de “Memorial de Aires” por Machado ilustra bem seu modo de fazer poético: uma “realização lingüística concreta”, “por um ato individual de utilização da língua na escrita”. Nesse contexto, o tempo em Machado de Assis está intrinsecamente ligado ao tempo psicológico do narrador, à forma como ele enuncia suas divagações e considerações em seu discurso.
Aposentado, o diplomata-narrador, insiste no fato de ter tempo de sobra para ir escrevendo seu diário. Assim, o tempo psicológico prevalece na narrativa, e, enquanto os fatos se desenrolam cronologicamente de forma linear e rápida, Aires vai registrando suas impressões sem pressa alguma. De forma difusa, devaneia - ou tartamudeia como queria Sílvio Romero - tornando o tempo fugaz e inapreensível. O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, já sentenciara Aires em “Esaú e Jacó”.  Além de uma personagem fundada na verossimilhança realista, Aires denota a idéia de um tempo que passa e tudo muda, apesar do desejo de permanência e de imortalidade.
A quem pensar que o tempo da obra é cronológico apenas por que os fatos se desenrolam com a marca de um calendário, é bom avisar que as marcas enganam, pois o narrador, que parece dar início a enunciação em 9 de Janeiro de 1888, começa dizendo que, naquele dia, exatamente há um ano, havia voltado definitivamente da Europa e, aí então, salta para aquele dia. Assim, não podemos precisar seguramente o tempo da narrativa que se movimenta conforme as considerações do narrador; em seu tempo psicológico, uma vez que a todo momento são trazidas à tona lembranças do passado que se misturam ao presente, em constantes vai-e-vem de sua memória e de suas conjecturas.  Da mesma forma que o narrador optou iniciar a narrativa com  ambigüidade do tempo, assim também achou por bem terminá-la: Sem data.
 Não podemos deixar de considerar paralelamente à questão do tempo a questão da velhice. Já no começo, em sua visita em companhia da irmã ao túmulo da família, o narrador comenta sobre o jazido, comparando-o a uma pessoa: Achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. Mais à frente, anota: ...se os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos... Viva a mocidade!, trabalhando ao longo de toda a narrativa com contraposições entre juventude e velhice, perenidade e permanência. Nessa mesma concepção, finaliza a narrativa de forma vaga e imprecisa dizendo sobre o velho casal Aguiar: ...vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos.

O espaço

            Essa é a categoria da narrativa por onde circulam as personagens e onde se desenvolve a ação.
A cidade do Rio de Janeiro é o campo privilegiado para as reflexões do autor em todas as suas narrativas. Como o flâneur de Walter Benjamim, mantém com a cidade uma relação amorosa, pois lhe percebe os detalhes, lhe confere um significado que vai além da aparência, em devaneios que faz com que a cidade seja vista como um prolongamento de si mesmo. Conhecer a cidade acaba significando conhecer a si próprio, pois as imagens que se formam no inconsciente são relacionadas com a experiência vivida.
No caso de Machado de Assis, sua relação com o Rio de Janeiro é acentuada e muito bem percebida. Machado passou por todas as instâncias dessa cidade, desde a residência humilde no Morro do Livramento até a derradeira e confortável casa no Cosme Velho, bairro nobre da época. O narrador faz perambular seus pensamentos pelos cenários dessa cidade – Flamengo, Catete, Andaraí, etc -, de forma que, como num labirinto, fazem com que o leitor, perdido em sua diversidade, mergulhe no texto em busca de seus significados.

A obra e a questão da verossimilhança

Nada impede que as circunstâncias em que o narrador integra a narrativa sejam ficcionais. Ao contrário da informação da imprensa, que se limita a relatar fatos verificáveis da realidade externa, a força de convicção da narrativa não reside na veracidade dos fatos narrados. A verdade da narrativa é de outra natureza e depende muito mais da construção, da tecitura da narrativa enquanto “peça” que se encaixa ou não na experiência coletiva.
Segundo Platão, a narrativa, como qualquer ficção, é um simulacro da verdade, que, por sua vez, já é um simulacro defeituoso da Idéia. A narrativa, enquanto simulacro do simulacro, é uma mentira; e o segredo da boa mentira estaria no fato de haver “circunstâncias” que a vinculem à “experiência” e que a tornem verdadeira enquanto representação bem-sucedida desta experiência. Assim sendo, o sucesso da narrativa não depende de questões como verdadeiro ou falso, mas da sua qualidade estética, ou seja, de fazer crer ao leitor de que aquela experiência é possível, mesmo que ficcional. Seria do caso das particularidades da narrativa poderem ser incorporadas numa totalidade que Benjamim prefere chamar de “experiência”. A própria narrativa traz consigo as circunstâncias em que foi contada, deixando claro que a “coisa narrada” não é um fato isolado, mas um fato integrado numa determinada experiência humana.

A narrativa mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retira-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (Bejamim, 1985, p. 205).

É a vocação de Machado de Assis para criar com maestria espaços, cheiros, sons, sentidos, vozes e personagens verossímeis, reconhecíveis e semelhantes às experiências de vida de qualquer um de nós, que torna sua obra tão real e atual.

Polifonia e intertextualidade

Ducrot inspirou-se em Baktin que usou o termo “polifonia” para designar a pluraridade de vozes que atuam em determinados textos. Segundo Baktin, tais vozes “falam” simultaneamente sem que nenhuma delas seja preponderante e julguem outras. Já Ducrot vai se interessar de perto pela polêmica que estas diferentes vozes podem criar dentro de um mesmo enunciado, assim como também pela maior ou menor força de umas sobre as outras. (Polifonia: Ida Machado, 1996, p.137)
Como síntese, chamamos de intertextualidade as “influências” registradas nas obras; ou o “rótulo” sob o qual se encontram todas as relações com escritos anteriores que se possam observar numa obra, como, por exemplo, a imitação de modelos em diversos graus, atingindo o assunto, o tema e o exercício da paródia. (Intertextualidade: Mendes, 1994, p. 140). Preocupação, no discurso, com citações de fontes. Citações de outros textos, de outros autores.

Segundo a perspectiva de Walter Benjamim, a citação não é apenas uma referência a outro texto, mas “uma referência a um texto de um passado mais ou menos remoto”. A citação, além de servir de elo entre presente e passado, evidencia ao mesmo tempo como um autor se posiciona com relação a esse passado. Citar é rememorar o passado a partir do ponto de vista específico de um determinado presente.

A síntese inesperada entre o fragmento citado e o texto presente é um indício para o fato de este último não ser inteiramente novo, assim como o texto citado não ser ‘coisa do passado’. Através da citação, o texto do passado dá provas de sua presença permanente, que não é o resultado de algum esforço de memória, o fragmento citado é a materialização de um parentesco subliminar, um vestígio, que sempre existiu e preexistiu ao autor do texto. (...) Dentro desta totalidade, a distância temporal perde seu caráter negativo, no sentido de separar dois textos, e aumenta o efeito surpreendente provocado pela aproximação repentina e inesperada através da citação. A citação livre do passado pressupõe que o presente não seja considerado como resultado de um determinado passado, mas como lugar autônomo de sua permanente reavaliação (Otte, 1996, p. 219-220).

Memorial de Aires está repleto de diálogos do narrador com outras obras e com outros autores. São as vozes do passando tomando seu lugar no presente, transformando a obra em que se insere:
·        Fui à minha pequena estante e tirei o livro de Fausto. Aires refere-se ao drama alemão de Goethe que baseia-se na lenda de um homem que vende sua alma ao diabo em troca de riquezas e da eterna juventude, comparando sua atração pela jovem viúva Noronha.
·        I can give not what men call love. Aires se utiliza do verso de Shelly, um dos primeiros poetas românticos ingleses, para falar da impossibilidade de realização de seu amor por Fidélia. Logo a seguir cita Thackeray, um romancista inglês que, como ele, ridicularizava os vícios de sua sociedade contemporânea.
·        Aires expõe seu ponto de vista sobre a atualidade e a eternidade dos dizeres eclesiásticos que, paradoxalmente, cantam a efemeridade de tudo. Se eu não tivesse os olhos adoentados dava-me a compor outro Eclesiastes, já à moderna,  posto nada deva haver moderno depois daquele livro.

Memorial de Aires também dialoga com a obra do próprio autor. O narrador, conselheiro Aires, é também o narrador de “Esaú e Jacó”: em ambos enredos, fino observador das sutilezas da psicologia humana. Na introdução do Memorial de Aires lemos a “Advertência” de Machado de Assis: Quem me leu Esaú e Jacó talvez reconheça estas palavras do prefácio: “Nos lazares do ofício escrevia o Memorial, que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis.” Referia-me ao conselheiro Aires. (...)
 

A ironia

A ironia é uma polifonia moderada, pois um único enunciado possibilita o reconhecimento de duas vozes, ou seja, dois enunciadores, onde um parece assumir o que diz e outro que não assume (o mais importante deles) e que corresponde à intenção do locutor (Fiorin, 2003).
O exemplo tradicional de ironia é dado por Sócrates. O método socrático consiste em destruir qualquer opinião isolada por colocá-la em contato com um contexto mais amplo ou estranho.
Duarte recorre a Lausberg ao definir ironia como a utilização do vocábulo com a convicção de que o receptor reconhecerá a incredibilidade desse vocabulário. O ponto de vista defendido pelo orador é, assim, reforçado, e, como resultado, as palavras irônicas são compreendidas num sentido que é o contrário ao seu sentido próprio.
Já a intenção da ironia humoresque ou de segundo grau, ainda conforme Duarte, não seria o oposto, ou dizer algo sem realmente dizê-lo, mas manter a ambigüidade, o caráter lúdico, fluído e instável da linguagem que o constitui e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro e definitivo.

Ironizar é distanciar-se, poder levantar questões, tornar presença em ausência, introduzir no saber o relevo da perspectiva. Ter flexibilidade, consciência e atenção ao real, prevenindo-se contra o desencanto, através da arte de examinar distanciadamente, sem se envolver com o fanatismo exclusivista.
Assim, a ironia pode ser uma arma em um ataque satírico, uma cortina de fumaça que encobre uma retirada, um estratagema para virar o mundo ou alguém às avessas, ou um estratagema que permite ao sujeito usar a linguagem e conviver harmoniosamente com sua incompletude (Duarte, 1991, p. 92).

Foi nesta forma de ironia que Machado de Assis se esmerou, revelando-se especialista. D. Carmo é das poucas pessoas a quem nunca ouvi dizer que são “doidas por morangos”, nem que “morrem por ouvir Morzart”, diz Aires ironizando o comportamento afetado e superficial da elite de seu tempo.

Metalinguagem


A metalinguagem é o nome dado ao recurso lingüístico que permite ao autor, na própria obra, falar do fazer poético, das particularidades de recursos criativos.
Auto-irônico, Aires, critica seu fazer poético, seu método narrativo: Não há nada pior que a gente vadia, - ou aponsentada, que é a mesma coisa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste.
Sempre me sucedeu apreciar a maneira por que os caracteres se exprimem e se compõem, e muita vez não me desgosta o arranjo dos próprios fatos. Gosto de ver e antever, e também de concluir.

Comentários

 
A independência de Machado de Assis em relação às “modas literárias” não se deve apenas a um alheamento em relação a estilos e doutrinas consagradas na época. Segundo Guelfi, mais do que isso, “o estilo literário de Machado de Assis consiste numa exploração sistemática da contradição, como estratégia de desconstrução dos códigos literários, filosóficos e científicos vigentes”. Ele não se mantém alheio a modismos, mas se utiliza deles para desmascarar os jogos de dominação e poder que estão por trás dos discursos consagrados pelas classes e grupos dominantes.

É do interior desses discursos das elites, explorando a linguagem elegante, estabelecida pelos padrões do bom-senso e do bom-gosto, que este ficcionista vai rasurar, com ironia, os códigos de significação privilegiados do sistema social brasileiro, subvertendo os hábitos requintados da burguesia e os esquemas lógicos do pensamento científico. Em outras palavras, a crítica à sociedade burguesa não se limita a descrições superficiais de costumes ou exaustivos inventários de mazelas públicas e privadas, mas se concentra numa exposição de como funcionam os próprios esquemas de dominação dessa burguesia (Guelfi, 1999).

Aperfeiçoando a cada obra a técnica da ironia, sua principal arma na exploração das contradições sociais, Machado não se põe na posição ingênua de um autor que deseja melhorar a sociedade, como se ocupasse um lugar neutro, de fora. Ao contrário, assume a linguagem das elites, colocando-se como parte integrante do mesmo sistema que satiriza. Dessa forma rompe com o protótipo do escritor realista-naturalista que, do alto de um saber ilustrado, se sente responsável pelo progresso científico e moral da sociedade como um todo.

Referências Bibliográficas
BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, v 1.
BRANDÃO, Ruth Silviano. Notações (in)significantes em Machado de Assis. in: Boletim do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte: UFMG, 1996, v. 16, n° 20, p. 131-140.
COSTA LIMA, Luiz. O controle do imaginário. in: Razão e imaginação no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984.
DUARTE, Lélia Parreira. Ironia, revolução e literatura. in: Ensaios de semiótica. Belo Horizonte: UFMG, 1991, v. 21-23.
FERREIRA, Eliane Fernanda Cunha. Cenas da crítica machadiana: a construção do vestido. in: Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte: UFMG, 1997, v. 5, p. 243.
GUELFI, Maria Lúcia Fernandes. O discurso da contradição em Machado de Assis. Belo Horizonte: UFMG, 1999, v. 19, n° 25, p. 9.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memorial de Aires. Coleção: Clássicos da Literatura. Belo Horizonte: UFMG – Biblioteca Universitária, 2003.
MACHADO DE ASSIS. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1971. v. 1: Esaú e Jacó, p. 946-1093.
MACHADO, Ida Lúcia. Polifonia: aspectos teóricos. in: Boletim do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte: UFMG, 1994, v. 14, n° 17, p. 137.
MENDES,  Nancy Maria. Intertextualidade. in: Boletim do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte: UFMG, 1994, v. 14, n° 17, p. 140.
OTTE, Georg. Rememoração e citação em Walter Benjamim. in: Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte: UFMG,            1996, v. 4, p. 217-220.
PEIXOTO, Sérgio Alves. O narrador machadiano.  in: Boletim do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte: UFMG, 1998, v. 18, n° 22, p. 133-140.
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas cidades, 1990.
BENVENISE, Èmile. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes; p.81-90, 1998.
FIORIN, José Luz (Org). Indrodução à lingüística II: princípio de análises. São Paulo: Contexto, 2003, p.161-185.

Nenhum comentário:

Postar um comentário