quarta-feira, 10 de julho de 2013

LITERATURA, HISTÓRIA E ESTILO "EM MEMORIAL DE AIRES"



Raquel Teles Yehezkel








Literatura, História e Estilo
EM MEMORIAL DE AIRES





Trabalho final, requisito da disciplina “Estudos sobre Estilo: em Machado de Assis”, ministrada pelo profa. dra. Ana Maria Clark Peres.





Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 14 de dezembro de 2006


 


Dados biográficos do autor


Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, na cidade do Rio de Janeiro. Era filho de um operário descendente de negros alforriados, pintor e dourador e de uma lavadeira portuguesa. Perdeu sua mãe muito cedo e teve que trabalhar para sobreviver tendo por isso estudado pouco. Era um homem de saúde frágil, epilético e gago. Apesar de sua origem humilde e do pouco que conseguiu estudar, Machado de Assis influenciou fortemente a literatura brasileira. Produziu uma obra extensa, publicando romances, contos, crônicas, peças teatrais e poesias, tornando-se o maior escritor do Brasil e um mestre a língua portuguesa. Machado teve sua obra reconhecida ainda em vida.
Em 1855 foi publicado seu primeiro trabalho literário: o poema “Ela”. No ano seguinte entrou para a Imprensa Nacional, como aprendiz de tipógrafo. Em 1859 já era revisor e colaborador no Correio Mercantil. No período de 1860 a 1875 escreveu para a revista “O espelho” na qual era crítico teatral. Em 1861, foi  publicado o livro “Queda que as mulheres têm para os tolos”, a primeira obra na qual seu nome aparece como tradutor. Em 1864 foi publicado seu primeiro livro de poesias “Crisálidas”. No ano de 1866, traduz a obra “Os trabalhadores do mar”, de Victor Hugo. Em 1869, o escritor casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, irmã do amigo Faustino Xavier de Novais que havia falecido três meses antes. O casal não teve filhos. Carolina, segundo dizem, foi sempre incentivadora de carreira literária do marido.
O primeiro romance do escritor,  “Ressurreição”, foi lançado em 1872. Neste mesmo ano inicia-se sua carreira de burocrata, como 1º oficial da Secretaria do Ministério da Agricultura Comércio e Obras Públicas. Em 1874, Machado de Assis começou a publicar  no jornal O Globo, o romance  “A mão e a luva”. Sua primeira peça teatral é encenada no Teatro Dom Pedro II, em junho de 1880, escrita especialmente para a comemoração do tricentenário de Camões. A publicação do livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em 1881, permitiu uma nova direção à carreira literária de Machado. Esta obra foi o marco do realismo na literatura brasileira. O livro foi publicado em folhetins na Revista Brasileira, no período de 15 de março de 1879 a 15 de dezembro de 1880. O ano de 1896 foi marcado pela instalação da Academia Brasileira de Letras, para a qual Machado de Assis foi escolhido presidente, onde permaneceu até o fim de sua vida.
Em 1889, lança “Dom Casmurro”, que é considerado pela crítica o ápice de sua carreira literária. Neste mesmo ano, Machado de Assis assume a Diretoria do Comércio. O ano de 1904 marcou a vida do escritor: falece a esposa Carolina e em sua homenagem escreve o soneto “À Carolina”. Em 1908 lança “Memorial de Aires”, e morre em 29 de setembro deste mesmo ano. É sepultado na cidade do Rio de Janeiro, com discurso de Rui Barbosa, em nome da Academia Brasileira de Letras. Por sua importância e valiosa contribuição à literatura brasileira, a Academia Brasileira de Letras passou a ser chamada  de Casa de Machado de Assis. Teve grandes amigos, entre eles: Joaquim Manuel de Macedo,  Manoel A. de Almeida, José de Alencar e Gonçalves Dias.
Outras obras relevantes do escritor:  Falenas (1872), Contos Fluminenses (1872), Histórias da meia-noite (1873), Americanas (versos) (1875), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Quincas Borba (1886), Várias Histórias (1896), Páginas recolhidas (1899), Esaú e Jacó (1904), Relíquias da casa velha (1906).

ANÁLISE HISTÓRICA DO PERÍODO MACHADIANO
Tópicos do contexto social, político e econômico retratados em “Memorial de Aires”

Nesta parte do trabalho serão abordados alguns aspectos históricos, sociais e econômicos do Segundo Reinado e do início da República (1889) vividos por Machado de Assis, contextualizados e registrados em Memorial de Aires. Exporei o contexto histórico de forma resumida e na medida do possível ilustrarei os tópicos tratados com pequenos trechos de Memorial de Aires, com a intenção de defender que, ao contrário do que alguns críticos literários afirmaram, Machado de Assis era sim comprometido com os movimentos políticos e sociais de seu tempo e um crítico arguto da sociedade em que vivia, e que essa maneira irônica de retratar a sociedade é uma das marcas do “estilo machadiano”. Os argumentos que busco para sustentar esta afirmativa continuarão a ser apresentados ao longo de todo o trabalho.

Contexto sócio-econômico – O Segundo Reinado tem início com o golpe da maioridade, uma manobra liberal através da qual – por meio de uma interpretação arranjada do Ato Adicional – D. Pedro II assume o trono aos catorze anos. Dá-se um novo processo de centralização do poder através de algumas reformas, entre elas a adoção do regime parlamentarista em 1847, apesar de um pouco às avessas. Apesar da manutenção do poder Moderador ter sido mantido e utilizado pelo Imperador, o novo regime permitia o rodízio entre os dois principais partidos do governo: o Conservador e o Liberal.
Quanto às diferenças entre os partidos, há uma certa divergência entre os historiadores. Segundo Caio Prado Júnior, há o que ele chama de burguesia reacionária e burguesia progressista. A primeira seria composta principalmente por senhores de terras e de escravos, enquanto que a segunda de comerciantes e financistas. Entretanto, a divergência entre os dois não se manifestaria na política partidária, apesar de a maioria dos chamados burgueses reacionários se encontrarem no Partido Conservador. Por sua vez, Raimundo Faoro vê no Partido Conservador a representação da burocracia, enquanto o Partido Liberal representaria os interesses agrários opostos ao poder central, promovido pelos burocratas. Já Boris Fausto traça uma linha divisória através das divergências acerca dos “grandes temas”: organização do Estado, liberdades políticas, representação e escravatura. Ele ressalta que após o “regresso” de D. Pedro I a Portugal e a maioridade de D. Pedro II, o tema da organização do Estado foi, na prática, deixado de lado até a década de 1860, visto que o modelo centralizador teve sua vitória inicial. A defesa da descentralização talvez fosse forte ainda em São Paulo e no Rio Grande do Sul, que procuravam obter maior autonomia. Quanto à defesa das liberdades e de uma representação política mais ampla dos cidadãos, o Partido Liberal era o principal defensor destas.
Ainda segundo Boris Fausto, a política desse período não se fazia para se alcançar grandes objetivos ideológicos, mas para obter prestígio e benefícios para si próprio e sua gente. Parece que essa realidade pode ser ilustrada pelo trecho a seguir, quando da morte do leiloeiro Fernandes, que representaria a influência Liberal entre os profissionais liberais:

 “... Chamava-se Fernandes. Sucumbiu a não sei que moléstia grega ou latina. Parece que era bom chefe de família, honrado. Laborioso, e excelente cidadão; a Vida Nova chama-lhe grande, mas talvez ele votasse com os liberais” (Machado de Assis, 2004, p. 44).

Já os proprietários rurais do Vale do Paraíba, que assentavam sua produção e investimento no trabalho escravo e eram, antes da abolição, a base do Império, e, na maioria, membros do Partido Conservador, estão bem representados na figura de Santa Pia, pai de Fidélia. Santa Pia era inimigo político do pai de seu genro e o casamento dos jovens gerou um escândalo no seio das duas famílias: “Romeu e Julieta aqui no Rio, entre a lavoura e a advocacia” (Machado de Assis, 2004, p.19).

 

A economia cafeeira e modernização do país – “A grande novidade na economia brasileira das primeiras décadas do século XIX foi o surgimento da produção do café para exportação,” (Fausto, 1998; pág. 186), no Vale do Rio Paraíba, Rio de Janeiro. A implantação das fazendas se deu pela forma tradicional da plantation, com o emprego de mão-de-obra escrava. Entre outras conseqüências, o complexo cafeeiro deslocou o pólo dinâmico do país para o centro-sul, iniciando o longo processo de decadência do Nordeste. Foi nesse sentido que a base de apoio do Império se formou. Seu apoio veio dos grandes comerciantes e proprietários rurais, entre os quais se destacavam os barões do café fluminenses, representado no romance pelo pai de Fidélia.

Enquanto isso, o café começava a se implantar em uma nova zona: o Oeste Paulista. Nessa expansão, a produção já não se assentava na força de trabalho escrava como no Vale do Paraíba. Contribuíram também para o sucesso da expansão para o Oeste Paulista o emprego de novas tecnologias (arado e despolpador), a chamada terra roxa e a ocupação de terras escassamente exploradas, ao contrario do Vale do Paraíba, que além de bem explorado possuía limites geográficos claros, resultando em terras cansadas.
Uma das principais contribuições que a cafeicultura proporcionou ao Brasil foi o desenvolvimento gerado pela atividade agrícola. Para o seu bom funcionamento, houve um investimento maciço em infra-estrutura: grandes empreendimentos industriais como a construção de portos para o escoamento da produção e o substancial investimento na malha ferroviária e hidroviária. Segundo Caio Prado Júnior “Assim, de um modo geral, o Brasil realizara um grande avanço no sistema de transportes, e apesar de suas deficiências (...), terá lançado as bases de todo seu desenvolvimento futuro” (Prado Junior,1945, p.208). Desenvolveu-se também a rede telegráfica, que favoreceu a articulação de todas as capitais e cidades principais do país. “Memorial de Aires” traz evidencias a respeito da situação de progresso que o país vivenciava:

Campos continuou a dizer todo o bem que achava no trem de ferro, como prazer e como vantagem. Só o tempo que a gente poupa!(...) Preferi trocar de assunto e agarrei-me aos derradeiros minutos, falei do progresso, ele também, e chegamos satisfeitos à cidade da serra (Machado de Assis, 2004, p. 26).

Nas palavras de Caio Prado Júnior, “Em termos relativos, o progresso no período que ora nos ocupa será mais acelerado que em qualquer momento posterior” (Prado Junior,1945, p. 208). Esse progresso pode também ser observado no romance na medida em que termos e instituições comercias entram no linguajar cotidiano e são usados em metáforas e comparações.
A carta de Fidélia começa por estas três palavras: “Minha querida mãezinha”-... – Nem tudo se perde nos bancos; o mesmo dinheiro, quando alguma vez se perde, muda apenas de dono. (Assis, 2004; pág.66) Carta enviada por Fidélia a Dona Carmo.

A escravidão e sua aboliçãoAbolição da escravatura se deu em maio de 1888. Após a proibição do Tráfico Negreiro em 1850, a instituição escravocrata perdeu muito de sua essência nos trabalhos servis. Ao dificultar a aquisição de escravos, os produtores, principalmente os fazendeiros de café, viam nos imigrantes europeus uma forma alternativa à mão-de-obra escrava, uma tentativa de preencher o hiato que criado na produção devido à carência de escravos.

A princípio, a coexistência de europeus livres com os escravos que ainda trabalhavam na produção não surtiu bons resultados. Segundo Prado Júnior, “A estranha combinação não surtirá efeitos e logo se verificará sua impraticabilidade, terminando num fracasso esta primeira tentativa de preencher com colonos europeus os vácuos deixados pela carência de escravos” (1945, p.186). Dessa forma, a abolição se deu de forma lenta e gradual. Primeiro proibiu-se a situação de escravos para os nascituros, com a lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871), posteriormente, editou-se a lei dos Sexagenários (1885), a qual permitiu a emancipação dos escravos maiores que sessenta anos. Ressalta-se que a tradição do trabalho escravo era muito forte no período colonial e sua existência foi considerada importante para o desenvolvimento do Brasil. Assim, ao abolir a escravidão, com a lei Áurea de 1888, verificou-se a princípio o declínio da produção brasileira e o enfraquecimento da oligarquia do Vale do Paraíba.
Um ponto interessante, enfatizado por Boris, foi, após a abolição, ocorrência de alguns casos onde antigos escravos viraram parceiros nas fazendas de café em decadência ou pequenos sitiantes e peões. Esse fato é em parte retratado no livro, apesar da forma romantizada, quando Fidélia decide entregar a fazenda para os libertos.

 

O republicanismo e a Proclamação da RepúblicaO desenvolvimento econômico propiciou o amadurecimento das estruturas socio-políticas do país, e, paralelamente aos dois partidos instituídos surgiu um movimento que não acreditava, como os liberais, que a descentralização, liberdades e representatividade poderiam ser conquistadas numa monarquia: era o movimento republicano. Ele se manifestou de diversas maneiras, entre elas, por meio do Partido Republicano Paulista e pelo exército. O primeiro era composto principalmente pela burguesia cafeeira. Já o segundo, cresceu de importância após a guerra do Paraguai (representada em “Iaiá Garcia”), que, insatisfeitos com a condução das políticas imperiais e inspirados pelos ideais positivistas e republicanos, marcharam contra o Império, no dia 15 de novembro de 1889, liderados pelo Marechal Deodoro da Fonseca. Após a proclamação da República, convocou-se a Assembléia Constituinte. A primeira Constituição da República inspirou-se no modelo norte-americano, nesse sentido, deu maior autonomia aos Estados, implementou o voto universal (do qual as mulheres estavam implicitamente excluídas) e defendeu os direitos de propriedade. 






ANÁLISE DO ESTILO DE M. DE A. EM “MEMORIAL DE AIRES”



“Memorial de Aires” é o último romance de Machado de Assis e pode-se dizer que o estilo de Machado se revela em todas instâncias desse livro. “Memorial de Aires” foi escrito em forma de diário por um diplomata recém aposentado, o conselheiro José da Costa Marcondes Aires, protagonista de pouca ação, interessado, principalmente, em observar o comportamento de seus semelhantes.


A história se passa no Rio de Janeiro, em fins do século XIX, especificamente entre janeiro de 1888, ano da Abolição dos escravos, e agosto de 1889, período que antecede a Proclamação da República - depois de o conselheiro ter passado boa parte de sua vida em serviços diplomáticos pelo mundo. A forma de diário permite a Machado de Assis escrever no estilo livre, repleto de digressões, que caracterizam sua fase realista.


A narrativa lenta e reflexiva – que tece considerações sobre a velhice e elogios às relações conjugais – pode ser considerada um “testamento” literário e existencial do autor. Vários traços autobiográficos já foram identificados pela crítica na obra. Machado deixa-se entrever tanto na figura do narrador Aires como na do casal Aguiar, que, como o autor, vive em harmonia, mas sofre com a falta de filhos. Vê-se também no nome do livro, “Memorial de Aires”, as iniciais do autor: M. de A.




Resumo da obra machadiana – A poética das narrativas de Machado de Assis pode ser dividida em duas fases. A primeira compreende suas obras da juventude, com forte influência da estética romântica, como Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878). E a segunda, marcada pelo amadurecimento do autor até chegar a fase realista de obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).

Em Memorial de Aires, Machado de Assis atinge o ápice de sua preocupação com a ambientação e situações existenciais sutis: “E andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismo!”, exclama Aires. Alheio a essa discussão, tanto Aires quanto Machado seguem interessados em investigar o caráter e a psicologia complexa das personagens.
O mesmo acontece em relação à poética dos contos de Machado. Sua obra é considerada pela crítica – se não a melhor – dentre as melhores do gênero na literatura brasileira. Seus contos abrangem, num espectro amplo, desde conflitos da sociedade brasileira (vide a questão escravista estampada de forma realista e cruel em Pai contra Mãe, onde um caçador de escravos, que precisa urgentemente de dinheiro por causa do nascimento de seu filho, prende uma escrava fugitiva, grávida, que, ao ser presa, aborta o filho do próprio dono) a conflitos do indivíduo (vide o conflito do músico e compositor de polcas famosas, protagonista de “O Homem Célebre”, em relação à própria criação que considera por ele próprio “comezinha”).
Sobre a narrativa machadiana, Costa Lima ressalta como característica recorrente uma “esterilidade” e uma “impossibilidade”: a impossibilidade da realização amorosa em sua completude, a impossibilidade da criação perfeita. A impossibilidade da criação perfeita teria sua causa “na própria ingrata natureza” e na insatisfação do público (que se contentaria com o trivial).

Síntese do enredo Memorial de Aires são as memórias do velho diplomata Aires, no período de janeiro de 1888 a agosto de 1889, na cidade do Rio de Janeiro. Aposentado, de volta ao Rio de Janeiro, o diplomata narra seus dias nesse período, tecendo análises sobre as pessoas e os acontecimentos da sociedade que o cerca. O tema central gira em torno de Fidélia, jovem viúva pela qual Aires se apaixona. Mas o romance – desde o começo já sabido impossível – não se realiza (como na maioria dos romances de Machado) e, pouco a pouco Aires desiste desse amor. Enquanto isto, Fidélia conhece Tristão, afilhado do velho casal Aguiar. Os dois apaixonam-se, casam-se e, finalmente, deixam o Brasil para viver em Portugal, onde vivem os pais de Tristão e onde lhe espera uma carreira política.




O narrador de M. de A.

O narrador é o que há de mais importante em qualquer narrativa. É ele quem dá as cartas ao leitor (...) a história a ser contada a ele pertence e é a ele que cabe a decisão de encontrar a maneira mais adequada – ou mais ardilosa – de apresentá-la ao leitor (Peixoto, 1998, p.133).
Em “Memorial de Aires” o narrador, também personagem protagonista do enredo, conta sua história em primeira pessoa. Por meio do conselheiro Aires, que em nenhum momento deixa de ser diplomata em suas ações e idéias, Machado revela sua natureza conciliadora e seu espírito observador. Toda a história, de certo sabor romanesco, é contada por um narrador que diz: “eu não amo a ênfase” ou “tudo se atenua assim neste mundo, e ainda bem”. Aires evita criticar as personagens e reserva-lhes sempre um olhar complacente: “eu não odeio nada e ninguém, perdono a tutti, como na ópera”.
Na tecitura da escrita, Aires fala diretamente ao leitor, buscando trazê-lo para a narrativa, uma marca do narrador nas obras de Machado: “– Ah! Minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse a indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria na eternidade”, observam as pessoas ao constatarem que Fidélia ia casar-se novamente. O conselheiro, com Machado, sempre comedido, chega à seguinte conclusão: “Os mortos podem muito bem combater os vivos, sem os vencer inteiramente”. Assim, perdem-se, narrador e leitor, em considerações, dúvidas e nos sofrimentos das personagens.
D. Cesária, que adora falar mal da vida alheia e odeia tanto Fidélia quanto Tristão, aparece como contraponto para a figura conciliadora do narrador, uma espécie de “alterego”. Isto pode ser detectado, por exemplo, quando ela lança algumas dúvidas sobre o caráter de Tristão. Dúvidas que o narrador, embora discorde, não impede que transpareçam na narração, deixando-se instalar a aura da ambigüidade, característica marcante do narrador machadiano.
Ao caráter difuso de Aires pode-se também relacionar o episódio da abolição dos escravos, mas com a ressalva de que ali o narrador expressa claramente de que lado se encontra. Machado, mestiço e discretamente abolicionista, registra com simpatia, sempre usando as palavras atenuadas de Aires, o momento da Abolição da Escravatura:

Venha que é tempo. Ainda me lembro do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln (...), mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos.

Contrariando aqueles que acusam Machado de Assis de nunca ter se envolvido com a questão abolicionista,  as palavras de Aires deixam seu testemunho sobre a escravidão. As declarações convictas do diplomata não deixam dúvidas quanto a seu envolvimento emocional com a questão:

Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sansão da Regente. (...) Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da Poesia.

Mas logo o conselheiro atenua a emoção e retorna à sua vida de voyeur / flâneur: impassível perscrutador da vida alheia. “Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular”.
Esse estilo difuso de narrar foi pejorativamente chamado por Sílvio Romero, contemporâneo do autor, de um “perpétuo tartamudear”, reduzindo o estilo de Machado à simples resultante biológica de sua gagueira, e sua obra à “conseqüência natural, mecânica e patológica de uma deficiência orgânica e psíquica”.

O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. (...) Vê-se que aquele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgão da palavra (...).
Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos impressão de um perpétuo tartamudear. Esse veso, (...) elevado a uma manifestação de graça e humor, é apenas, repito, o resultado de uma lacuna dão romancista nos órgãos da palavra (Romero, 1879).

No período em que a exaltação nacional e as cores locais deveriam fornecer o tom às expressões culturais, Sílvio Romero estaria mais interessado na construção de uma determinada mentalidade brasileira do que na literatura, contudo, sua crítica marca de forma clara características fundamentais do estilo machadiano. Machado considerava a óptica realista reducionista e buscava através de suas reflexões “assegurar à nossa literatura o direito à universalidade das matérias por oposição ao ponto de vista que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local” (Schwarz, 1990, p. 9). Para Ferreira, a proposta de Machado de Assis era a de “inserir a nossa literatura numa dialética do local e do universal, demonstrando que o todo está nas partes e a parte no todo” (1997, p. 248). Essa subversão à estética de seu tempo, segundo Silviano Santiago

(...) não é um jogo gratuito de cunho nacionalista estreito, (...) mas compreensão de que, apesar de se produzir uma obra culturalmente dependente, pode-se dar o salto por cima das imitações e das sínteses enciclopédicas etnocêntricas e contribuir com algo original (1982, p. 22).
Sílvio Romero não conseguia compreender um narrador diferente dos que estava acostumado nos romances naturalistas e realistas de sua época, preocupados em representar, quase sempre denunciando, uma realidade que, para Machado, sempre se apresentava como, no mínimo, ambígüa (1998, p.136).

Em oposição a Sílvio Romero, Roberto Schwarz ressalta que o “tartamudear” e a “volubilidade” do narrador em Machado é sua marca registrada (ou seja, parte de seu estilo) e também a marca de uma modernidade que ele antecipou. Por ser volúvel e “tartamudear”, o narrador machadiano “conduz-nos a uma espécie de labirinto de que desejamos encontrar a saída sempre negaceada” (Schwarz, 1990). Nesse labirinto reina o prazer de se perder.
A narrativa do conselheiro Aires é retardada por digressões que tornam o ritmo lento, assim o leitor pode “ruminar” as questões levantadas por personagens complexas e ambíguas, mesmo que, muitas vezes, possam parecer superficiais. As análises do velho diplomata assumem um papel preponderante: análises psicológicas na sua maioria, mas também análises de questões sociais, políticas e históricas. Veja a questão escravagista (o pai de Fidélia alforria seus escravos para evitar que a abolição o faça, defendendo a idéia de que o ato de alforriar fosse uma questão particular e não pública), a própria abolição dos escravos ou os problemas do reinado de D. Pedro II, tudo, no dizer de Sérgio Peixoto, “não é mero pano de fundo, mas o próprio palco (nunca bem iluminado) em que transitam os seres de Machado” (Peixoto, 1998).

As personagens de M. de A. – “A personagem é um ser de papel, e não um indivíduo de carne e osso” (Roland Barthes). A personagem, esse ser fictício construído por palavras, é a sustentação viva da ação.

Segundo Costa Lima, “como Machado vivia em um meio provinciano, sob um Estado clientelístico, precisou desenvolver uma técnica (...) que temos chamado a ‘técnica do palimpsesto’, isto é, formada por duas camadas, uma aparentemente cordata, a esconder da tinta visível a virulência crítica, deposta na segunda” (Costa Lima, 1984).
Esta técnica pode ser detectada com certa facilidade nas relações entre as personagens que o autor desenvolve em Memorial de Aires. Segundo Ruth Brandão, no romance urbano de então, (vide José de Alencar como exemplo) o enredo gira em torno do tema romântico do casamento e do dinheiro. A mocinha rica sempre se casa com o homem rico. Se um dos dois é pobre, torna-se ou revela-se rico por algum estratagema. O desejo é embelezado pelo amor aparentemente desinteressado, e a ficção se resolve conforme o senso comum.
Já em Memorial de Aires, um texto aparentemente inocente, o herói romântico é substituído por personagens comuns, mais próximos da realidade do dia-a-dia: “A  cara não me era estranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilíssima, como ouvi dizer de outras em Roma”. A questão romântica do casamento e do dinheiro, que também se aparenta corriqueira, já não se resolve de forma tão rósea. Também diferentemente do romantismo –, onde as relações da sociedade patriarcal com o casamento e o dinheiro se resolvem dentro do esperado –, as soluções dos dilemas amorosos em Memorial de Aires reservam-nos constantes surpresas, apontando para sujeitos imprevisíveis e fragmentados, de uma completude apenas imaginária. Como, por exemplo, o interesse amoroso despertado por Fidélia em Aires, que parecia ter certa força, mas se arrefece no decorrer da narrativa.  Também as incongruências da vida afetiva de Fidélia, que, apesar de parecer uma jovem pacata, casa-se contra a vontade dos pais (e aqui não é Verona, como observa Aires), passando a ser ignorada por esses. Após presumirmos que seria viúva por toda a vida, em sinal de fidelidade ao “amor verdadeiro” (não por acaso seu nome é Fidélia), apaixona-se pelo jovem Tristão, e, para mostrar que o amor entre ambos é desinteressado, abrem mão da herança, deixando a fazenda, herdada por Fidélia, para os escravos. Finalmente, decepcionando “a gente Aguiar” (e a gente: leitores), o jovem casal que, supostamente, deveria cuidar dos “pais adotivos”, muda-se em definitivo para Portugal, onde uma carreira política promissora aguardaria o jovem Tristão.
Fidélia – Como uma das características do estilo de Machado de Assis, o próprio nome da personagem já sugere alguma relação com a sua personalidade. Nesse caso a questão da fidelidade que será levantada pelo narrador ao longo da obra ao “discutir” o estado de viuvez de Fidélia, bem como sua opção pela solidão (pelo menos temporária). O narrador discute e fantasia sobre essa mulher: um tipo amado e querido por quase todos. Nos intervalos, encena-se, dramatiza-se algo, sem se saber exatamente o quê, já que Fidélia não se deixa amar nem conhecer: “...pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação”. Numa representação ambígua, sua personalidade é posta em julgamento, levantando suspeitas, de forma implícita ou não, se ela é ou não fiel: aos pais que amava, mas que foi capaz de deixar; ao falecido marido, a quem jurou amor eterno, mas acabou se casando novamente; ao casal Aguiar, que a teve como filha, mas que abandonou em nome do novo amor.
Ainda segundo Ruth Brandão, as mulheres inatingíveis em Machado não se parecem com as do romantismo que perpetuam a idealização da mulher na sua plenitude imaginária. “São antes um indizível, um resíduo que passam pelo feminino e causam o texto” (Brandão, 1996). Fidélia e Capitu, em “Dom Casmurro”, relacionam-se ao indizível, à impossibilidade de realização e da completude una, representando a visão de um mundo imperfeito. Talvez a essa característica peculiar do autor, a crítica tenha chamado de “pessimismo em Machado”.
O casal Aguiar - Escrita por Machado após a morte de sua esposa Maria Carolina, “Memorial de Aires” traz na terna figura de D. Carmo um retrato nostálgico da companheira perdida. Segundo Frederico Barbosa “a coincidência dos nomes – Aguiar e Assis, Carmo e Carolina –, o carinho extremado, a infertilidade, tudo leva a crer que o casal ficcional seja uma representação pouco disfarçada do casal Assis” (Barbosa, 2003. in: Machado de Assis, Memorial de Aires, Biblioteca Universitária).
Tristão - Afilhado que o casal Aguiar criou como filho, muda-se com os pais para Portugal, passando anos sem mandar notícias. É o seu retorno, porém, que dá um novo rumo à narrativa, pois sua presença é responsável por mudanças na vida do casal Aguiar, bem como na de Fidélia que, por causa dele, desiste da solidão.

O tempo em M. de A.   Aposentado, o diplomata-narrador, insiste no fato de ter tempo de sobra para ir escrevendo seu diário. Assim, o tempo psicológico prevalece na narrativa, e, enquanto os fatos se desenrolam cronologicamente de forma linear e rápida, Aires vai registrando suas impressões sem pressa alguma. De forma difusa, devaneia - ou tartamudeia como queria Sílvio Romero - tornando o tempo fugaz e inapreensível. “O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo”, já sentenciara Aires em “Esaú e Jacó”.  Além de uma personagem fundada na verossimilhança realista, Aires denota a idéia de um tempo que passa e tudo muda, apesar do desejo de permanência e de imortalidade. Esta noção de não permanência está presente em todas as obras de Machado.
A quem pensar que o tempo da obra é cronológico apenas por que os fatos se desenrolam com a marca de um calendário, é bom saber que as marcas enganam, pois o narrador, que parece dar início a enunciação em 9 de Janeiro de 1888, começa dizendo que, naquele dia, exatamente há um ano, havia voltado definitivamente da Europa e, aí então, salta para aquele dia. Assim, não podemos precisar seguramente o tempo da narrativa que se movimenta conforme as considerações do narrador; em seu tempo psicológico, uma vez que a todo momento são trazidas à tona lembranças do passado que se misturam ao presente, em constantes vai-e-vem de sua memória e de suas conjecturas.  Da mesma forma que o narrador optou por iniciar a narrativa com  ambigüidade do tempo, assim também achou por bem terminá-la: “Sem data”.
 Não se pode deixar de considerar, paralelamente à questão do tempo, a questão da velhice. Já no começo, em sua visita em companhia da irmã ao túmulo da família, o narrador comenta sobre o jazido, comparando-o a uma pessoa: “Achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do tempo, que tudo consome”. Mais à frente, anota: “...se os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos... Viva a mocidade!”, trabalhando ao longo de toda a narrativa com contraposições entre juventude e velhice, perenidade e permanência. Nessa mesma concepção, finaliza a narrativa de forma vaga e imprecisa dizendo sobre o velho casal Aguiar: “...vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos”.

 

O espaço em M. de A. – Essa é a categoria da narrativa por onde circulam as personagens e onde se desenvolve a ação.

A cidade do Rio de Janeiro é o campo privilegiado para as reflexões do autor em todas a sua obra. Como o flâneur, de Walter Benjamim, mantém com a cidade uma relação amorosa, pois lhe percebe os detalhes, lhe confere um significado que vai além da aparência, em devaneios que faz com que a cidade seja vista como um prolongamento de si mesmo. “Conhecer a cidade acaba significando conhecer a si próprio”, pois as imagens que se formam no inconsciente são relacionadas com a experiência vivida.
No caso de Machado de Assis, sua relação com o Rio de Janeiro é acentuada e muito bem marcada como uma das característica de sua obra. Machado passou – em vida e na obra literária – por todas as instâncias dessa cidade, desde a residência humilde no Morro do Livramento até a derradeira e confortável casa no Cosme Velho, bairro nobre da época. Em “Memorial de Aires”, o narrador faz perambular seus pensamentos pelos cenários dessa cidade – Flamengo, Catete, Andaraí -, de forma que, como num labirinto, fazem com que o leitor, perdido na diversidade geográfica do Rio, mergulhe no texto em busca de seus mistérios.

 

M. de A. e a questão da verossimilhança – Nada impede que as circunstâncias em que o narrador integra a narrativa sejam ficcionais. Ao contrário da informação da imprensa, que se limita a relatar fatos verificáveis da realidade externa, a força de convicção da narrativa não reside na veracidade dos fatos narrados. A verdade da narrativa é de outra natureza e depende muito mais da construção, da tecitura da narrativa enquanto “peça” que se encaixa ou não na experiência coletiva.

Segundo Platão, a narrativa, como qualquer ficção, é um simulacro da verdade, que, por sua vez, já é um simulacro defeituoso da Idéia. A narrativa, enquanto simulacro do simulacro, é uma mentira; e o segredo da boa mentira estaria no fato de haver “circunstâncias” que a vinculem à “experiência” e que a tornem verdadeira enquanto representação bem-sucedida desta experiência. Assim sendo, o sucesso da narrativa não depende de questões como verdadeiro ou falso, mas da sua qualidade estética, ou seja, de fazer crer ao leitor de que aquela experiência é possível, mesmo que ficcional. Seria do caso das particularidades da narrativa poderem ser incorporadas numa totalidade que Benjamim prefere chamar de “experiência”. A própria narrativa traz consigo as circunstâncias em que foi contada, deixando claro que a “coisa narrada” não é um fato isolado, mas um fato integrado numa determinada experiência humana.

A narrativa mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (Bejamim, 1985, p. 205).

É a vocação de Machado de Assis para criar com maestria espaços, cheiros, sons, sentidos, vozes e personagens verossímeis, reconhecíveis e semelhantes às experiências de vida de qualquer um de nós, que torna sua obra tão real e atual.

A polifonia e a intertextualidade em M. de A. – Preocupação, no discurso, com citações de fontes. Citações de outros textos, de outros autores.
Ducrot inspirou-se em Bakthin que usou o termo “polifonia” para designar a pluraridade de vozes que atuam em determinados textos. Segundo Bakthin, tais vozes “falam” simultaneamente sem que nenhuma delas seja preponderante e julguem outras. Já Ducrot vai se interessar de perto pela polêmica que estas diferentes vozes podem criar dentro de um mesmo enunciado, assim como também pela maior ou menor força de umas sobre as outras. (Polifonia: Ida Machado, 1996, p.137)
Como síntese, chamamos de intertextualidade as “influências” registradas nas obras; ou o “rótulo” sob o qual se encontram todas as relações com escritos anteriores que se possam observar numa obra, como, por exemplo, a imitação de modelos em diversos graus, atingindo o assunto, o tema e o exercício da paródia. (Intertextualidade: Mendes, 1994, p. 140).
Segundo a perspectiva de Walter Benjamim, a citação não é apenas uma referência a outro texto, mas “uma referência a um texto de um passado mais ou menos remoto”. A citação, além de servir de elo entre presente e passado, evidencia ao mesmo tempo como um autor se posiciona com relação a esse passado. Citar é rememorar o passado a partir do ponto de vista específico de um determinado presente.
A síntese inesperada entre o fragmento citado e o texto presente é um indício para o fato de este último não ser inteiramente novo, assim como o texto citado não ser ‘coisa do passado’. Através da citação, o texto do passado dá provas de sua presença permanente, que não é o resultado de algum esforço de memória, o fragmento citado é a materialização de um parentesco subliminar, um vestígio, que sempre existiu e preexistiu ao autor do texto. (...) Dentro desta totalidade, a distância temporal perde seu caráter negativo, no sentido de separar dois textos, e aumenta o efeito surpreendente provocado pela aproximação repentina e inesperada através da citação. A citação livre do passado pressupõe que o presente não seja considerado como resultado de um determinado passado, mas como lugar autônomo de sua permanente reavaliação (Otte, 1996, p. 219-220).

Toda a obra de Machado de Assis, assim como Memorial de Aires, é marcada por diálogos do narrador com outras obras e com outros autores. São as vozes do passando tomando seu lugar no presente, transformando a obra em que se insere. Seguem alguns exemplos extraídos da narrativa:
·        “Fui à minha pequena estante e tirei o livro de Fausto.” Aires refere-se ao drama alemão de Goethe que baseia-se na lenda de um homem que vende sua alma ao diabo em troca de riquezas e da eterna juventude, comparando sua atração pela jovem viúva Noronha.
·        “I can give not what men call love.” Aires se utiliza do verso de Shelly, um dos primeiros poetas românticos ingleses, para falar da impossibilidade de realização de seu amor por Fidélia. Logo a seguir cita Thackeray, um romancista inglês que, como ele, ridicularizava os vícios de sua sociedade contemporânea.
·        Aires expõe seu ponto de vista sobre a atualidade e a eternidade dos dizeres eclesiásticos que, paradoxalmente, cantam a efemeridade de tudo. “Se eu não tivesse os olhos adoentados dava-me a compor outro Eclesiastes, já à moderna,  posto nada deva haver moderno depois daquele livro.”

Memorial de Aires também dialoga com a obra do próprio autor. O narrador, conselheiro Aires, é também o narrador de “Esaú e Jacó”: em ambos os enredos o narrador é um fino observador das sutilezas da psicologia humana. Na introdução do Memorial de Aires lemos a “Advertência” de Machado de Assis: “Quem me leu Esaú e Jacó talvez reconheça estas palavras do prefácio: ‘Nos lazares do ofício escrevia o Memorial, que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis.’ Referia-me ao conselheiro Aires. (...)”

 

A ironia em M. de A. – O exemplo tradicional de ironia é dado por Sócrates. O método socrático consiste em destruir qualquer opinião isolada por colocá-la em contato com um contexto mais amplo ou estranho.

Lélia Duarte recorre a Lausberg ao definir ironia como a utilização do vocábulo com a convicção de que o receptor reconhecerá a incredibilidade desse vocabulário. O ponto de vista defendido pelo orador é, assim, reforçado, e, como resultado, as palavras irônicas são compreendidas num sentido que é o contrário ao seu sentido próprio.
Já a intenção da ironia humoresque ou de segundo grau, ainda conforme Duarte, não seria o oposto, ou dizer algo sem realmente dizê-lo, mas manter a ambigüidade, o caráter lúdico, fluído e instável da linguagem que o constitui e demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de um sentido claro e definitivo.

Ironizar é distanciar-se, poder levantar questões, tornar presença em ausência, introduzir no saber o relevo da perspectiva. Ter flexibilidade, consciência e atenção ao real, prevenindo-se contra o desencanto, através da arte de examinar distanciadamente, sem se envolver com o fanatismo exclusivista.
Assim, a ironia pode ser uma arma em um ataque satírico, uma cortina de fumaça que encobre uma retirada, um estratagema para virar o mundo ou alguém às avessas, ou um estratagema que permite ao sujeito usar a linguagem e conviver harmoniosamente com sua incompletude (Duarte, 1991, p. 92).

Foi nesta forma de ironia que Machado de Assis se esmerou, revelando-se especialista. A ironia é uma das marcas do estilo de Machado. “D. Carmo é das poucas pessoas a quem nunca ouvi dizer que são ‘doidas por morangos’, nem que ‘morrem por ouvir Morzart’”, diz Aires ironizando o comportamento afetado e superficial da elite de seu tempo.

A metalinguagem em M. de A – Metalinguagem é o nome dado ao recurso lingüístico que permite ao autor, na própria obra, falar do próprio fazer poético, das particularidades de recursos criativos.

Auto-irônico, Aires, critica seu fazer poético, seu método narrativo:
  • “Não há nada pior que a gente vadia, - ou aposentada, que é a mesma coisa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste”.
·        “Sempre me sucedeu apreciar a maneira por que os caracteres se exprimem e se compõem, e muita vez não me desgosta o arranjo dos próprios fatos. Gosto de ver e antever, e também de concluir.”

CONCLUSÃO


A independência de Machado de Assis em relação às “modas literárias” não se deve apenas a um alheamento em relação a estilos e doutrinas consagradas na época. Segundo Guelfi, mais do que isso, “o estilo literário de Machado de Assis consiste numa exploração sistemática da contradição, como estratégia de desconstrução dos códigos literários, filosóficos e científicos vigentes”. Ele não se mantém alheio a modismos, mas se utiliza deles para desmascarar os jogos de dominação e poder que estão por trás dos discursos consagrados pelas classes e grupos dominantes.


É do interior desses discursos das elites, explorando a linguagem elegante, estabelecida pelos padrões do bom-senso e do bom-gosto, que este ficcionista vai rasurar, com ironia, os códigos de significação privilegiados do sistema social brasileiro, subvertendo os hábitos requintados da burguesia e os esquemas lógicos do pensamento científico. Em outras palavras, a crítica à sociedade burguesa não se limita a descrições superficiais de costumes ou exaustivos inventários de mazelas públicas e privadas, mas se concentra numa exposição de como funcionam os próprios esquemas de dominação dessa burguesia (Guelfi, 1999).

Aperfeiçoando a cada obra a técnica da ironia, sua principal arma na exploração das contradições sociais, Machado não se põe na posição ingênua de um autor que deseja melhorar a sociedade, como se ocupasse um lugar neutro, de fora. Ao contrário, assume a linguagem das elites, colocando-se como parte integrante do mesmo sistema que satiriza. Dessa forma cria um estilo próprio, rompendo com o protótipo do escritor realista-naturalista que, do alto de um saber ilustrado, se sente responsável pelo progresso científico e moral da sociedade como um todo.
Enfim, utilizando-me da análise do contexto histórico e social do período em que Machado de Assis viveu e da análise do estilo nas instâncias literárias especificamente em “Memorial de Aires”, reafirmo o parecer suposto na primeira parte deste trabalho: de que Machado desenvolveu um estilo próprio, uma forma de escrita que lhe permitiu, como participante ativo da sociedade, criticar as imperfeições da sociedade e dos indivíduos de forma sistemática, valendo-se principalmente da ironia, das ambigüidades de seus narradores e personagens, e também da busca por uma perfeição, sempre frustrada, sempre perdida, sabida de antemão, inatingível – imperfeição nas relações de suas personagens que acabam sempre solitárias, imperfeição da própria criação literária, sempre cheia de lacunas a serem preenchidas pelo leitor.

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