Raquel Teles Yehezkel
CLASSIFICANDO
E INVENTARIANDO O MUNDO
Uma visão
de Maria Esther Maciel
Trabalho requisitado pela disciplina de
Literatura Comparada
- ministrada pela profa. Ana Maria Clark
Peres -,
baseado na aula da profa. Maria Esther Maciel
(UFMG),
em 19 de outubro de 2007 e no texto:
MACIEL, Maria Esther. “A memória das
coisas”.
In: A memória das coisas. Rio de
Janeiro: Lamparina, 2004.
Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 23 de novembro de 2007
Maria Esther Maciel (2004)
faz uma abordagem comparativista, buscando semelhanças e diferenças, entre
trabalhos dos escritores Jorge Luis Borges e Georges Perec, do cineasta
britânico Peter Greenaway e do artista plástico Arthur Bispo do Rosário, que,
com “imaginação taxonômica” (p.13), buscaram catalogar o mundo, criando
inventários, listas, coleções, enumerações; seja visando abarcar a ilusória
completude do mundo, seja na tentativa de entender, de organizar e de ordená-lo
ou de criticar essa ordem.
De
Borges, analisa o personagem Irineu Funes, do conto “Funes, o memorioso”, cuja
obsessão era inventariar todas as lembranças possíveis, de todas as coisas que
viu, leu e viveu. Borges caracteriza esse catálogo mental como inútil, pois, em
vez de trazer conforto e segurança ao mundo de Funes, trazia-lhe infelicidade,
já que sua memória sem lapsos tornou-se um “‘despejadouro de lixos’, uma
espécie de ‘museu de tudo’, onde as coisas se acumulam na mesma proporção em
que anulam qualquer esforço de organização” (p.14). Como no conto “A biblioteca de Babel”, Borges
tenta evidenciar a insensatez e a ineficácia das tentativas de classificações
exaustivas do saber e das coisas o mundo, que acaba sempre culminando em
classificações arbitrárias, visto que toda classificação “tende, em seus
limites, a revelar o caráter do que é naturalmente incontrolável e ilimitado”
(p.14).
De Georges Perec, judeu
polonês, analisa o romance Vida: modo de usar, em que os objetos e as
particularidades de um prédio de Paris são exaustivamente inventariados, de tal
forma que a ordenação e o detalhamento perdem a própria eficácia, dando a
impressão de que apenas coisas pudessem perdurar para além do esquecimento,
desvendando, assim, a precariedade da vida humana.
Peter Greenaway,
além de destacar as temáticas sempre atravessadas por uma “lógica serial”, faz
exposições em forma de catálogos, nos quais “objetos, imagens e palavras acabam
por instaurar o caos “dentro da própria ordenação que as define” (p.16). Assim
o artista parece querer zombar da mania dos intelectuais de catalogar tudo e de
“transformar o mundo em verbetes de enciclopédia” (p.21).
Nessa linha da
“imaginação taxonômica”, no Brasil, Maria Esther encontrou ótimo representante
da “obsessão enciclopédica” na coleção de quase mil peças do sergipano Arthur
Bispo do Rosário: artista pobre, negro e psicótico, que foi pugilista,
marinheiro e empregado doméstico, e que viveu cinqüenta anos em um hospital
psiquiátrico do Rio de Janeiro. A diferença entre Bispo do Rosário e os citados
anteriormente é que o trabalho desse, apesar de altamente estético e artístico,
não resultava de uma inquietação intelectual nem de um projeto estético. Bispo
do Rosário era “inteiramente alheio aos espaços privilegiados das artes e do
saber de seu tempo” (p.16). Segundo o próprio artista, seus trabalhos eram
registros de sua passagem sobre a terra, pois acreditava que havia sido
escolhido por Deus para reconstruir o mundo após o fim de tudo, repovoando a
terra com seus objetos e suas listas de nomes de coisas e de pessoas que
deveriam sobreviver ao fim. Assim, ao definir seu trabalho como “registros de
sua passagem pela terra” (p.17), sua obra passa também a ter um caráter
biográfico, memorialista.
Bispo do Rosário buscava matéria prima no cotidiano mais
imediato, nos dejetos dos outros: sapatos, pentes, garrafas, ferramentas,
talheres, chapéus, caixas, roupas velhas, enfim, tudo que a sociedade perdia,
desprezava ou jogava fora. Interessava-se por coletar a multiplicidade das
coisas fabricadas e suas nomenclaturas para manter viva a memória do mundo.
“Compôs, a partir desse entulho, uma espécie de memorial de sua passagem pelo
mundo, uma narrativa ordenada segundo as leis mais rigorosas, asas da taxonomia
e, ao mesmo tempo atravessada pela espontaneidade de uma imaginação delirante”
(p.17).
Maria Esther também associa o trabalho de Bispo do
Rosário com o de Nóe, considerado “o primeiro colecionador da história da
humanidade” (p.17), ao agrupar todas as criaturas da terra contra a
destrutividade do tempo e da morte.
Maria Esther esclarece que o objeto, ao entrar na ordem
da subjetividade do colecionador, perde sua função social e histórica,
substituída pela classificação. No caso de Bispo do Rosário, acredita que isso
se dá de forma mais complexa, pois os objetos que ele usa, mesmo que esvaziados
do caráter funcional, passam a dizer muito mais de seu contexto do que quando
exerciam suas funções imediatas: “convertem-se em metonímias do contexto de que
foram tirados” (p.19). Sua obra conta tanto a história individual do artista
como a história do mundo do consumo, daí sua capacidade de impacto sobre o
expectador.
O ato de catalogar as coisas do mundo de forma a atingir
sua completude, seja para entendê-lo, ordená-lo ou preservá-lo, parece ter sido
objetivo de Bispo do Rosário, contrariamente ao dos outros citados, que,
conscientes de seu fazer artístico, não tinham necessariamente o objetivo
ilusório de completude, mas a necessidade de crítica, “de mostrar como os
princípios legitimados de organização, sejam alfabéticos, numéricos,
estatísticos, cartográficos, tendem a se tornar fins em si mesmos” (p.21).
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