sábado, 20 de julho de 2013

CLASSIFICAR E INVENTARIAR O MUNDO: BORGES, BISPO DO ROSÁRIO E OUTROS NA VISÃO DE MARIA ESTHER MACIEL



Raquel Teles Yehezkel







CLASSIFICANDO E INVENTARIANDO O MUNDO
Uma visão de Maria Esther Maciel




Trabalho requisitado pela disciplina de Literatura Comparada
- ministrada pela profa. Ana Maria Clark Peres -,
baseado na aula da profa. Maria Esther Maciel (UFMG),
em 19 de outubro de 2007 e no texto:
MACIEL, Maria Esther. “A memória das coisas”.
In: A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.





Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 23 de novembro de 2007

Maria Esther Maciel (2004) faz uma abordagem comparativista, buscando semelhanças e diferenças, entre trabalhos dos escritores Jorge Luis Borges e Georges Perec, do cineasta britânico Peter Greenaway e do artista plástico Arthur Bispo do Rosário, que, com “imaginação taxonômica” (p.13), buscaram catalogar o mundo, criando inventários, listas, coleções, enumerações; seja visando abarcar a ilusória completude do mundo, seja na tentativa de entender, de organizar e de ordená-lo ou de criticar essa ordem.
            De Borges, analisa o personagem Irineu Funes, do conto “Funes, o memorioso”, cuja obsessão era inventariar todas as lembranças possíveis, de todas as coisas que viu, leu e viveu. Borges caracteriza esse catálogo mental como inútil, pois, em vez de trazer conforto e segurança ao mundo de Funes, trazia-lhe infelicidade, já que sua memória sem lapsos tornou-se um “‘despejadouro de lixos’, uma espécie de ‘museu de tudo’, onde as coisas se acumulam na mesma proporção em que anulam qualquer esforço de organização” (p.14).  Como no conto “A biblioteca de Babel”, Borges tenta evidenciar a insensatez e a ineficácia das tentativas de classificações exaustivas do saber e das coisas o mundo, que acaba sempre culminando em classificações arbitrárias, visto que toda classificação “tende, em seus limites, a revelar o caráter do que é naturalmente incontrolável e ilimitado” (p.14).
            De Georges Perec, judeu polonês, analisa o romance Vida: modo de usar, em que os objetos e as particularidades de um prédio de Paris são exaustivamente inventariados, de tal forma que a ordenação e o detalhamento perdem a própria eficácia, dando a impressão de que apenas coisas pudessem perdurar para além do esquecimento, desvendando, assim, a precariedade da vida humana.
            Peter Greenaway, além de destacar as temáticas sempre atravessadas por uma “lógica serial”, faz exposições em forma de catálogos, nos quais “objetos, imagens e palavras acabam por instaurar o caos “dentro da própria ordenação que as define” (p.16). Assim o artista parece querer zombar da mania dos intelectuais de catalogar tudo e de “transformar o mundo em verbetes de enciclopédia” (p.21).
            Nessa linha da “imaginação taxonômica”, no Brasil, Maria Esther encontrou ótimo representante da “obsessão enciclopédica” na coleção de quase mil peças do sergipano Arthur Bispo do Rosário: artista pobre, negro e psicótico, que foi pugilista, marinheiro e empregado doméstico, e que viveu cinqüenta anos em um hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro. A diferença entre Bispo do Rosário e os citados anteriormente é que o trabalho desse, apesar de altamente estético e artístico, não resultava de uma inquietação intelectual nem de um projeto estético. Bispo do Rosário era “inteiramente alheio aos espaços privilegiados das artes e do saber de seu tempo” (p.16). Segundo o próprio artista, seus trabalhos eram registros de sua passagem sobre a terra, pois acreditava que havia sido escolhido por Deus para reconstruir o mundo após o fim de tudo, repovoando a terra com seus objetos e suas listas de nomes de coisas e de pessoas que deveriam sobreviver ao fim. Assim, ao definir seu trabalho como “registros de sua passagem pela terra” (p.17), sua obra passa também a ter um caráter biográfico, memorialista.
Bispo do Rosário buscava matéria prima no cotidiano mais imediato, nos dejetos dos outros: sapatos, pentes, garrafas, ferramentas, talheres, chapéus, caixas, roupas velhas, enfim, tudo que a sociedade perdia, desprezava ou jogava fora. Interessava-se por coletar a multiplicidade das coisas fabricadas e suas nomenclaturas para manter viva a memória do mundo. “Compôs, a partir desse entulho, uma espécie de memorial de sua passagem pelo mundo, uma narrativa ordenada segundo as leis mais rigorosas, asas da taxonomia e, ao mesmo tempo atravessada pela espontaneidade de uma imaginação delirante” (p.17).         
Maria Esther também associa o trabalho de Bispo do Rosário com o de Nóe, considerado “o primeiro colecionador da história da humanidade” (p.17), ao agrupar todas as criaturas da terra contra a destrutividade do tempo e da morte.
Maria Esther esclarece que o objeto, ao entrar na ordem da subjetividade do colecionador, perde sua função social e histórica, substituída pela classificação. No caso de Bispo do Rosário, acredita que isso se dá de forma mais complexa, pois os objetos que ele usa, mesmo que esvaziados do caráter funcional, passam a dizer muito mais de seu contexto do que quando exerciam suas funções imediatas: “convertem-se em metonímias do contexto de que foram tirados” (p.19). Sua obra conta tanto a história individual do artista como a história do mundo do consumo, daí sua capacidade de impacto sobre o expectador.
O ato de catalogar as coisas do mundo de forma a atingir sua completude, seja para entendê-lo, ordená-lo ou preservá-lo, parece ter sido objetivo de Bispo do Rosário, contrariamente ao dos outros citados, que, conscientes de seu fazer artístico, não tinham necessariamente o objetivo ilusório de completude, mas a necessidade de crítica, “de mostrar como os princípios legitimados de organização, sejam alfabéticos, numéricos, estatísticos, cartográficos, tendem a se tornar fins em si mesmos” (p.21).

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