terça-feira, 9 de julho de 2013

O LABIRINTO EM JORGE LUIS BORGES E EM "A CASA DE ASTERION"



Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Faculdade de Letras






Raquel Teles Yehezkel







O LABIRINTO EM JORGE LUIS BORGES

E EM

“A CASA DE ASTERION”










Requesito do curso de Mito e Literatura / Graduação,
                                                  ministrado pela profª, doutora em Letras, Ruth Brandão.











Belo Horizonte, 2005





Metafora - esa curva verbal

que traza casi siempre entre dos puntos

        espirituales – el caminho mas breve.

(Borges)

 

 

O minotauro como o ser humano

- criador de toda cultura e civilização –

e o labirinto como o mundo

 


       No conto A Casa de Asterion (O Aleph, p.53-55), Jorge Luis Borges expõe a fragilidade e as limitações do ser humano na fala do minotauro, denominado Asterion: um ser estranho e múltiplo - como o homem -, que habita uma estranha morada de múltiplos centros e múltiplos caminhos: o labirinto – como metáfora de mundo (Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia e talvez de loucura).
       Nesse conto de Borges, o minotauro é o narrador, e fala de si na primeira pessoa. Apesar do enunciado claro com que logo de início o narrador/personagem se apresenta e descreve sua casa, conta como vive e as brincadeiras de que gosta, deparamos com uma configuração fantástica, pois o uso de metáforas como forma ambivalente e simultânea de criar novos sentidos torna a história ambígua; desvela ao leitor a dualidade do ser humano/animal, do real/irreal, da vida/morte, e possibilita-nos relacionar Asterion/ser humanizado ao minotauro e a casa/seu mundo ao labirinto.
       Nesta perspectiva, o labirinto deixa de ser a prisão do minotauro para ser a casa de Asterion: metáfora das cidades e do mundo, produtos da civilização humana (...pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta). A vida do minotauro no labirinto assemelha-se então à trajetória humana - onde cabem os devaneios, as brincadeiras, a busca e a fuga do outro, a imprevisibilidade, a vulnerabilidade e as frustrações de estar vivo -, sugerindo ser a existência uma travessia constante ou um itinerário errante.
       Dessa forma, Borges transforma a realidade do mito para criar uma outra realidade. E nessa nova perspectiva – surgida na reescritura -, não de forma clara, mas latente no texto, consegue trazer à tona a relação do homem com si mesmo e com o mundo, dando ao mito uma nova dimensão.
       Por conseguinte, o minotauro, visto como o ser humano, afirma sua unicidade e seu poder criador (...duas coisas no mundo me parecem existir uma só vez: em cima, o intricado sol; embaixo, Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro) mas, ao mesmo tempo, expõe sua vulnerabilidade ao reconhecer que suporta a angústia de saber-se único, solitário e perplexo diante da situação absurda de viver, porque tem a certeza de que virá o dia de sua salvação: a morte (...um deles - um dos visitantes do labirinto -, na hora  da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que meu redentor vive... Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas), o que demonstra a aceitação de um destino inevitável, fora de seu controle, cujo sentido escapa à sua compreensão, mas liberta-o de seus limites.
Continuando a análise de A Casa de Asterion por esse prisma, o labirinto seria uma construção, ou seja, a própria concretização da cultura humana, construída pelo homem para abrigar, reter, esconder suas pulsões mais primitivas. O minotauro e o labirinto seriam o “outro lado”: do homem e do mundo, que a linguagem, a escrita, as criações simbólicas, rituais e toda a cultura criada pelo homem tentariam dissimular, mas que as falhas, as faltas, as lacunas, as rupturas permitem entrever. Nesta linha de raciocínio, o saber estaria na direção do minotauro, ou seja, do conhecimento do outro eu, escondido em nós mesmos, em nossas pulsões mais primárias (por isso Teseu escolhe penetrar o labirinto e buscar o minotauro/a si mesmo).
        Em suma, o texto de Borges deixa-nos entrever que o minotauro somos nós (Mas, de todos os brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que ele vem visitar-me...), o nosso lado primitivo; e o labirinto - símbolo universal de “perdição” - a civilização que vamos construindo passo a passo e onde nos perdemos (Cada lugar é igual, mas é outro lugar). Perdidos dentro de nossos próprios labirintos, construímos labirintos cada vez mais complexos e mais perfeitos, onde nos aprisionamos mesmo sem ter consciência de ser prisioneiros (Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja um prisioneiro... Mesmo porque, num entardecer, pisei na rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta), e nos colocamos à espera da redenção, ou seja, da libertação de nós mesmos.
         Fechando a análise do conto interpretamos a ruptura que se dá no último parágrafo. Até então o tempo e a voz do discurso são o tempo e a voz de Asterion/narrador. O discurso sugestivo do conto em que a identificação Asterion/minotauro está velada, muda radicalmente na última linha, quando a identidade Asterion/minotauro é revelada na voz de Teseu (O sol da manhã rebrilhou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de sangue. – Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro apenas se defendeu). Apesar da revelação de que Asterion é o minotauro, paradoxalmente, a identidade de ambos continuará questionável, pois, na ruptura abrupta do tempo e da voz de Asterion, até então narrador, novas perspectivas se abrem.
         Com a introdução de um outro tempo e outra voz que não a de Asterion (ao menos supostamente o narrador/Asterion havia morrido), e apesar da constatação de que a personagem problemática é Asterion, o animal sacrificador, e não Teseu, o final permite-nos pensar que Teseu não assassinou o minotauro (não restava qualquer vestígio de sangue na espada), que o que viu foi seu “outro lado”/minotauro. Ou, ao menos, permite-nos concluir que (cito JOZEF – p.49):  ambos os personagens são versões de um mesmo problema, usando a fórmula de Schopenhauer: “o indivíduo sacrifica a si mesmo esforçando-se por se tornar o braço da justiça eterna, cuja natureza verdadeira ignora.”
Ao escrever A Casa de Asterion, Borges serviu-se do mito do labirinto e o minotauro como instrumento para criar novas possibilidades de sentidos e de interpretações, imprimindo ao conto uma dimensão que não se encontra no mito.

O labirinto como a trajetória do homem e
a escrita como processo de alienação ou de desalienação

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria Kodoma e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria Kodoma e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto (BORGES, Jorge Luis – O Labirinto. in: Atlas, 1984).        
Segundo Borges, a literatura se faz com palavras e se concretiza por intermédio da linguagem. Esta se converte em criadora de realidade: a palavra se “torna uma espécie de força primigênia na qual se originam todos os seres e acontecimentos (Cassier)”. Ou seja, o texto literário é uma construção, uma realidade que se cria.
Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Na segunda oração do texto, o autor repete a oração anterior e a amplia com o acréscimo de um novo período, introduzindo nova personagem e nova idéia. Este mesmo processo será repetido pelo autor como técnica usada na construção de todo o texto. Faz-se necessário também atentar para o pronome dêitico este, que aparece desde a primeira oração, sugerindo a proximidade do narrador que mais tarde se apresentará no texto.
A partir da linguagem, o objetivo de Borges neste texto parecer ser o de quem busca na estética a correspondência entre a idéia de labirinto e sua conformação verbal.
Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Na terceira oração imprime nova ramificação ao texto com a inserção de mais dois períodos: que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e: e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações – recurso que cria novos núcleos, ou seja, novos centros para um texto labiríntico. O primeiro ligado à oração principal Este é o labirinto de Creta à qual vai se ligar um período mais distante no texto e no tempo: e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. O segundo, seria cujo centro foi o Minotauro, a qual se subordina à: que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem. Por meio de repetições e de ramificações textuais, Borges vai conformando texto e idéia labirinto.
Apesar de o enunciado parecer claro e óbvio, para interpretar este texto em amplitude parece necessário por vezes abandonar a lógica e procurar por novos sentidos criados pela estética inusitada da linguagem. Conforme Borges, o fato estético “reside em la inminencia de uma revelación que no se produce”, ou seja, a revelação encontra-se no texto, mas não de forma óbvia. Assim, reconhecendo a impossibilidade de a palavra abarcar o real, na elaboração do processo narrativo deste texto, o autor, enquanto criador de uma linguagem, produz uma nova realidade estética como meio de atingir o seu objetivo.
Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria Kodoma e eu nos perdemos. Voltando ao pronome “este” que sugere a proximidade do narrador, ele aqui se apresenta incluindo-se no texto juntamente com Maria Kodoma, como novos personagens; inrompe-se abruptamente por meio do emprego da primeira pessoa do singular e do plural.)
A metáfora do labirinto e a metaforização do mundo e do homem na forma labiríntica tornam-se o tema e o processo desta criação textual de Borges. Isto nos leva a crer que os “enigmas” deste labirinto textual poderão ser revelados pelo próprio texto - signo de si mesmo -, onde criaram-se novos sentidos que não existiriam se o texto fosse tecido de outra forma.
Ao lê-lo, pressente-se que há um segredo que pode estar revelado em qualquer parte dele. A sua forma labiríntica torna-se a própria metáfora do texto e ao mesmo tempo metáfora da procura do homem. Supostamente, esta composição labiríntica deveria ocultar um centro revelador do enigma do texto. Supostamente no centro, de acesso difícil, estaria a chave de decifração do universo. Só que, pela repetição e pela inserção de novos elementos que se ramificam em novas orações, Borges brinca com a linguagem criando novos centros e, por conseguinte, novos sentidos.

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria Kodoma e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria Kodoma e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto. Com a repetição da última oração acrescida de naquela manhã , adjunto adv. de tempo, e de novo período, acrescentam-se novos elementos e idéias: o tempo que se apresenta como tempos distintos, o daquela manhã e um outro tempo infinito, que se liga à idéia de labirinto: nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto. A metaforização do tempo em labirinto apresenta um novo enigma do que é o labirinto: um enigma do enigma. Atente-se também que foi usado o pronome esse para dizer de um outro labirinto que não este, o de Creta, mas aquele, o tempo.
As idéias se encadeiam para produzir sempre um outro encadeamento. A repetição da oração com a inserção de um novo elemento, em contínua duplicação que parece reiterar a idéia de labirinto, produz uma construção feita ao mesmo tempo de simetrias e dissimetrias, que nos proporciona surpresas, já que a simetria ou a dissimetria inesperadas, os acontecimento muitas vezes separados por séculos de distância, sugerem a idéia de eternidade. É neste modo de o autor entretecer os temas e as imagens que abrem-se às múltiplas interpretações. O homem perdido no labirinto do tempo, feito de mudanças que são repetições, contempla-se na eternidade.
Este labirinto meticulosamente construído por Borges está organizado dentro de uma estrutura sintática de orações que se reproduzem e se desenvolvem a cada repetição: inicia-se com uma oração simples, agregando sempre novos elementos, em constante ordem crescente de complexidade sintática e de sentidos. Esta construção sintática, embora possa parecer rígida e organizada, e por isso limitadora (como uma edificação concreta), é que possibilita a geração de novos e múltiplos sentidos, pois - como o homem e o mundo – ela oculta desorganização e lacunas. A idéia de desorganização e lacunas decorre da tessitura da escrita, que não é capaz de abarcar a completude da idéia, e, por isso - como o homem e o mundo -, é sempre incompleta e lacunar. Possui rupturas que causam estranhamento, questionamento, e, ao mesmo tempo, desvelam, descortinam novas perspectivas de interpretações que podem revelar, desmascarar o caráter de alienação do “real”. A “revelação” encontra-se em estado de latência entre o texto e os sentidos que ele produz, portanto pode ou não ser desvelada, dependendo da relação texto/leitor.
A partir da análise de A Casa de Asterion e de O Labirinto de Borges, podemos inferir que a escrita, em contexto mais amplo (não apenas nos textos citados), é um instrumento de criação que o homem utiliza para gerar novos sentidos, novas possibilidades, e, portanto, carrega em si o poder de transformação. Por conseguinte, o autor é um construtor: capaz de criar realidade e cultura.






Referências Bibliográficas
BORGES, Jorge Luis – A Casa de Asterion.  in: O Aleph. Trad: Flávio José Cardozo, Rio de Janeiro: Globo. p.53-55.
BORGES, Jorge Luis e GUERRERO, Margarita – O livro dos seres imaginários. Trad: Carmem Vera C. Lima. Rio de Janeiro: Globo, 1982. p.97-98.
JOSEF, Bella. – O labirinto e a paródia como modelo do texto borgiano. in: América Hispânica, no. 7, ano V, jan/jun. SEPEHA, Faculdade de Letras, UFRJ, 1992. p.45-57.

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