Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Faculdade de Letras
Raquel Teles Yehezkel
O LABIRINTO EM JORGE LUIS BORGES
E EM
“A CASA DE ASTERION”
Requesito
do curso de Mito e Literatura / Graduação,
ministrado pela profª, doutora em Letras,
Ruth Brandão.
Belo Horizonte, 2005
Metafora - esa curva verbal
que traza casi siempre entre dos puntos
– espirituales – el caminho mas breve.
(Borges)
O minotauro como o ser humano
- criador de toda cultura e civilização –
e o labirinto como o mundo
No conto A Casa de Asterion (O
Aleph, p.53-55), Jorge Luis Borges expõe a fragilidade e as limitações do ser
humano na fala do minotauro, denominado Asterion: um ser estranho e múltiplo -
como o homem -, que habita uma estranha morada de múltiplos centros e múltiplos
caminhos: o labirinto – como metáfora de mundo (Sei que me acusam de
soberba, e talvez de misantropia e talvez de loucura).
Nesse conto de Borges, o minotauro é o
narrador, e fala de si na primeira pessoa. Apesar do enunciado claro com que
logo de início o narrador/personagem se apresenta e descreve sua casa, conta
como vive e as brincadeiras de que gosta, deparamos com uma configuração
fantástica, pois o uso de metáforas como forma ambivalente e simultânea de
criar novos sentidos torna a história ambígua; desvela ao leitor a dualidade do
ser humano/animal, do real/irreal, da vida/morte, e possibilita-nos relacionar
Asterion/ser humanizado ao minotauro e a casa/seu mundo ao labirinto.
Nesta perspectiva, o labirinto deixa de
ser a prisão do minotauro para ser a casa de Asterion: metáfora das cidades e
do mundo, produtos da civilização humana (...pátios com uma cisterna e com
poeirentas galerias de pedra cinzenta). A vida do minotauro no labirinto
assemelha-se então à trajetória humana - onde cabem os devaneios, as
brincadeiras, a busca e a fuga do outro, a imprevisibilidade, a vulnerabilidade
e as frustrações de estar vivo -, sugerindo ser a existência uma travessia
constante ou um itinerário errante.
Dessa forma, Borges transforma a
realidade do mito para criar uma outra realidade. E nessa nova perspectiva –
surgida na reescritura -, não de forma clara, mas latente no texto, consegue
trazer à tona a relação do homem com si mesmo e com o mundo, dando ao mito uma
nova dimensão.
Por conseguinte, o minotauro, visto como
o ser humano, afirma sua unicidade e seu poder criador (...duas coisas no
mundo me parecem existir uma só vez: em cima, o intricado sol; embaixo,
Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já
não me lembro) mas, ao mesmo tempo, expõe sua vulnerabilidade ao reconhecer
que suporta a angústia de saber-se único, solitário e perplexo diante da
situação absurda de viver, porque tem a certeza de que virá o dia de sua
salvação: a morte (...um deles - um dos visitantes do labirinto -, na
hora da morte, profetizou que um dia vai
chegar meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que meu
redentor vive... Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas),
o que demonstra a aceitação de um destino inevitável, fora de seu controle,
cujo sentido escapa à sua compreensão, mas liberta-o de seus limites.
Continuando a análise de A
Casa de Asterion por esse prisma, o labirinto seria uma construção, ou
seja, a própria concretização da cultura humana, construída pelo homem para
abrigar, reter, esconder suas pulsões mais primitivas. O minotauro e o
labirinto seriam o “outro lado”: do homem e do mundo, que a linguagem, a
escrita, as criações simbólicas, rituais e toda a cultura criada pelo homem
tentariam dissimular, mas que as falhas, as faltas, as lacunas, as rupturas
permitem entrever. Nesta linha de raciocínio, o saber estaria na direção do
minotauro, ou seja, do conhecimento do outro eu, escondido em nós mesmos, em
nossas pulsões mais primárias (por isso Teseu escolhe penetrar o labirinto e
buscar o minotauro/a si mesmo).
Em suma, o texto de Borges deixa-nos entrever que o minotauro somos nós
(Mas, de todos os brinquedos, o que prefiro é o do outro Asterion. Finjo que
ele vem visitar-me...), o nosso lado primitivo; e o labirinto - símbolo
universal de “perdição” - a civilização que vamos construindo passo a passo e
onde nos perdemos (Cada lugar é igual, mas é outro lugar). Perdidos
dentro de nossos próprios labirintos, construímos labirintos cada vez mais
complexos e mais perfeitos, onde nos aprisionamos mesmo sem ter consciência de
ser prisioneiros (Outra afirmação ridícula é que eu, Asterion, seja um
prisioneiro... Mesmo porque, num entardecer, pisei na rua; se voltei antes da
noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos
e iguais, como a mão aberta), e nos colocamos à espera da redenção, ou
seja, da libertação de nós mesmos.
Fechando a análise do conto interpretamos a ruptura que se dá no último
parágrafo. Até então o tempo e a voz do discurso são o tempo e a voz de
Asterion/narrador. O discurso sugestivo do conto em que a identificação
Asterion/minotauro está velada, muda radicalmente na última linha, quando a
identidade Asterion/minotauro é revelada na voz de Teseu (O sol da manhã
rebrilhou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de sangue. –
Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro apenas se defendeu).
Apesar da revelação de que Asterion é o minotauro, paradoxalmente, a identidade
de ambos continuará questionável, pois, na ruptura abrupta do tempo e da voz de
Asterion, até então narrador, novas perspectivas se abrem.
Com a introdução de um outro tempo e outra voz que não a de Asterion (ao
menos supostamente o narrador/Asterion havia morrido), e apesar da constatação
de que a personagem problemática é Asterion, o animal sacrificador, e não
Teseu, o final permite-nos pensar que Teseu não assassinou o minotauro (não
restava qualquer vestígio de sangue na espada), que o que viu foi
seu “outro lado”/minotauro. Ou, ao menos, permite-nos concluir que (cito JOZEF
– p.49): ambos os personagens são
versões de um mesmo problema, usando a fórmula de Schopenhauer: “o indivíduo
sacrifica a si mesmo esforçando-se por se tornar o braço da justiça eterna,
cuja natureza verdadeira ignora.”
Ao escrever A Casa de
Asterion, Borges serviu-se do mito do labirinto e o minotauro como
instrumento para criar novas possibilidades de sentidos e de interpretações,
imprimindo ao conto uma dimensão que não se encontra no mito.
O labirinto como a trajetória do
homem e
a escrita como processo de
alienação ou de desalienação
Este é o
labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro.
Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como
um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações.
Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como
um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas
gerações, onde Maria Kodoma e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo
centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e
em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria Kodoma e eu nos
perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto (BORGES, Jorge Luis – O Labirinto. in: Atlas, 1984).
Segundo
Borges, a literatura se faz com palavras e se concretiza por intermédio da
linguagem. Esta se converte em criadora de realidade: a palavra se “torna
uma espécie de força primigênia na qual se originam todos os seres e
acontecimentos (Cassier)”. Ou seja, o texto literário é uma construção, uma
realidade que se cria.
Este é o labirinto de Creta. Este é
o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Na segunda
oração do texto, o autor repete a oração anterior e a amplia com o acréscimo de
um novo período, introduzindo nova personagem e nova idéia. Este mesmo processo
será repetido pelo autor como técnica usada na construção de todo o texto.
Faz-se necessário também atentar para o pronome dêitico este, que
aparece desde a primeira oração, sugerindo a proximidade do narrador que mais
tarde se apresentará no texto.
A
partir da linguagem, o objetivo de Borges neste texto parecer ser o de quem
busca na estética a correspondência entre a idéia de labirinto e sua
conformação verbal.
Este é o labirinto de Creta. Este é
o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta
cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de
homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Na
terceira oração imprime nova ramificação ao texto com a inserção de mais dois
períodos: que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e: e
em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações – recurso que cria novos
núcleos, ou seja, novos centros para um texto labiríntico. O primeiro ligado à
oração principal Este é o labirinto de Creta à qual vai se ligar um
período mais distante no texto e no tempo: e em cuja rede de pedra
perderam-se tantas gerações. O segundo, seria cujo centro foi o
Minotauro, a qual se subordina à: que Dante imaginou como um touro com
cabeça de homem. Por meio de repetições e de ramificações textuais, Borges
vai conformando texto e idéia labirinto.
Apesar
de o enunciado parecer claro e óbvio, para interpretar este texto em amplitude
parece necessário por vezes abandonar a lógica e procurar por novos sentidos
criados pela estética inusitada da linguagem. Conforme Borges, o fato estético
“reside em la inminencia de uma revelación que no se produce”, ou seja,
a revelação encontra-se no texto, mas não de forma óbvia. Assim, reconhecendo a
impossibilidade de a palavra abarcar o real, na elaboração do processo
narrativo deste texto, o autor, enquanto criador de uma linguagem, produz uma
nova realidade estética como meio de atingir o seu objetivo.
Este é o labirinto de Creta. Este é
o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta
cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de
homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Este é o labirinto
de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com
cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria
Kodoma e eu nos perdemos. Voltando ao pronome “este” que
sugere a proximidade do narrador, ele aqui se apresenta incluindo-se no texto
juntamente com Maria Kodoma, como novos personagens; inrompe-se abruptamente
por meio do emprego da primeira pessoa do singular e do plural.)
A metáfora do labirinto e
a metaforização do mundo e do homem na forma labiríntica tornam-se o tema e o
processo desta criação textual de Borges. Isto nos leva a crer que os “enigmas”
deste labirinto textual poderão ser revelados pelo próprio texto - signo de si
mesmo -, onde criaram-se novos sentidos que não existiriam se o texto fosse
tecido de outra forma.
Ao
lê-lo, pressente-se que há um segredo que pode estar revelado em qualquer parte
dele. A sua forma labiríntica torna-se a própria metáfora do texto e ao mesmo
tempo metáfora da procura do homem. Supostamente, esta composição labiríntica
deveria ocultar um centro revelador do enigma do texto. Supostamente no centro,
de acesso difícil, estaria a chave de decifração do universo. Só que, pela
repetição e pela inserção de novos elementos que se ramificam em novas orações,
Borges brinca com a linguagem criando novos centros e, por conseguinte, novos
sentidos.
Este é o labirinto de Creta. Este é
o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta
cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de
homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações. Este é o labirinto
de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com
cabeça de homem e em cuja rede de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria
Kodoma e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o
Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede
de pedra perderam-se tantas gerações, onde Maria Kodoma e eu nos perdemos
naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto. Com
a repetição da última oração acrescida de naquela manhã , adjunto adv.
de tempo, e de novo período, acrescentam-se novos elementos e idéias: o tempo
que se apresenta como tempos distintos, o daquela manhã e um outro tempo infinito,
que se liga à idéia de labirinto: nos perdemos naquela manhã e
continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto. A metaforização do
tempo em labirinto apresenta um novo enigma do que é o labirinto: um enigma do
enigma. Atente-se também que foi usado o pronome esse para dizer de um outro
labirinto que não este, o de Creta, mas aquele, o tempo.
As
idéias se encadeiam para produzir sempre um outro encadeamento. A repetição da
oração com a inserção de um novo elemento, em contínua duplicação que parece
reiterar a idéia de labirinto, produz uma construção feita ao mesmo tempo de
simetrias e dissimetrias, que nos proporciona surpresas, já que a simetria ou a
dissimetria inesperadas, os acontecimento muitas vezes separados por séculos de
distância, sugerem a idéia de eternidade. É neste modo de o autor entretecer os
temas e as imagens que abrem-se às múltiplas interpretações. O homem perdido no
labirinto do tempo, feito de mudanças que são repetições, contempla-se na
eternidade.
Este
labirinto meticulosamente construído por Borges está organizado dentro de uma
estrutura sintática de orações que se reproduzem e se desenvolvem a cada
repetição: inicia-se com uma oração simples, agregando sempre novos elementos,
em constante ordem crescente de complexidade sintática e de sentidos. Esta
construção sintática, embora possa parecer rígida e organizada, e por isso
limitadora (como uma edificação concreta), é que possibilita a geração de novos
e múltiplos sentidos, pois - como o homem e o mundo – ela oculta desorganização
e lacunas. A idéia de desorganização e lacunas decorre da tessitura da escrita,
que não é capaz de abarcar a completude da idéia, e, por isso - como o homem e
o mundo -, é sempre incompleta e lacunar. Possui rupturas que causam
estranhamento, questionamento, e, ao mesmo tempo, desvelam, descortinam novas
perspectivas de interpretações que podem revelar, desmascarar o caráter de
alienação do “real”. A “revelação” encontra-se em estado de latência entre o
texto e os sentidos que ele produz, portanto pode ou não ser desvelada,
dependendo da relação texto/leitor.
A
partir da análise de A Casa de Asterion e de O Labirinto de
Borges, podemos inferir que a escrita, em contexto mais amplo (não apenas nos
textos citados), é um instrumento de criação que o homem utiliza para gerar
novos sentidos, novas possibilidades, e, portanto, carrega em si o poder de
transformação. Por conseguinte, o autor é um construtor: capaz de criar
realidade e cultura.
Referências Bibliográficas
BORGES, Jorge Luis – A
Casa de Asterion. in: O Aleph. Trad:
Flávio José Cardozo, Rio de Janeiro: Globo. p.53-55.
BORGES, Jorge Luis e GUERRERO, Margarita – O
livro dos seres imaginários. Trad: Carmem Vera C. Lima. Rio de Janeiro:
Globo, 1982. p.97-98.
JOSEF, Bella. – O
labirinto e a paródia como modelo do texto borgiano. in: América Hispânica,
no. 7, ano V, jan/jun. SEPEHA, Faculdade de Letras, UFRJ, 1992. p.45-57.
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