quarta-feira, 10 de julho de 2013

PRAZER E FRUSTRAÇÕES NA BUSCA PELA PERFEIÇÃO - O ESTILO EM MACHADO DE ASSIS



Raquel Teles Yehezkel
(O prazer está na busca de algo que não se encontra. Ver artigo João Paulo: E.M. Pensar 4.2.07)








PRAZER E FRUSTRAÇÕES NA BUSCA PELA PERFEIÇÃO -
O ESTILO EM MACHADO DE ASSIS 





Literatura comparada: trabalho requisitado pela disciplina Estudos sobre Estilo, ministrada pela professora doutora Ana Maria Clark Peres.                                                                              






Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 10 de novembro de 2006


Este trabalho pretende ser uma análise despretensiosa sobre o estilo em Machado de Assis. Para fazer esta abordagem foram escolhidos três contos do autor, a saber: “A Cantiga dos Esponsais”, “Um Homem Célebre” e “O Cônego ou a Metafísica do Estilo”. A motivação que me levou a escolher estes contos foi a reflexão que eles contêm sobre o processo criativo de um autor e a relação dele com o seu público. “A Cantiga dos Esponsais” e “Um Homem Célebre” discorrem sobre o processo criativo musical; o primeiro aborda a questão da incapacidade criativa de um grande maestro e o segundo a produção medíocre de um compositor famoso que se sabe capaz de muito mais. “O Cônego ou a Metafísica do Estilo” reflete sobre o processo criativo do escritor. Dessa forma, os três giram em torno de um mesmo tema.
Pareceu-me que a partir desses contos, poderia encontrar um fio que os perpassasse e que conduzisse à compreensão do estilo em Machado de Assis. A perspectiva teórica pela qual pretendo abordar a questão do estilo em Machado – a mesma pela qual optei no trabalho apresentado anteriormente – foi-me oferecida pelos ensaios de Ana Maria Clark Peres e de Jésus Santiago, publicados na revista “O Estilo na Contemporaneidade” (2005), mas nem um nem outro tem responsabilidade sobre a conclusão que deles depreendi e sobre a qual me deterei daqui para frente. Ou seja, optei pela acepção de estilo que buscará na escritura as marcas que designarão o prazer criativo do autor; aquilo que o move a produzir. Acepção que toca, sim, na singularidade do autor, mas singularidade marcada na obra pelo modo de prazer peculiar que o impulsiona a criar: manifestação artística que traz à tona a capacidade de invenção do autor.
Tentarei sustentar que o estilo em Machado de Assis é marcado pela suspensão entre a busca da perfeição e a impossibilidade de alcançá-la plenamente. E que na laboração do texto, na busca pela perfeição e na aflição da falta da mesma é que se encontraria a sua fonte de prazer.
Nos três contos apresentados, Machado deixa-nos entrever as satisfações e as aflições de seu fazer poético. O fio que conduziria seu prazer de criar, e que marcaria a sua escrita, parece ser a busca incansável pela perfeição; alvo que se mostra desde logo inatingível, nos três contos, mas, ainda assim, altamente desejável. Não que Machado busque uma obra inteiramente perfeita – sabe ser inatingível –, mas momentos de perfeição que a perpasse e que, em última instância, atinjam o leitor.
Para fim estritamente didático, com o intuito de identificar com mais precisão a busca pela perfeição, no caso específico de Machado de Assis, nas relações autor, obra e receptor, dividi-la-emos em três instânciass distintas. A primeira seria a busca da relação produtiva plena entre o escritor e as palavras – ou as notas musicais, nos dois primeiros contos. A segunda seria a busca da completude por meio de uma relação amorosa perfeita e inspiradora. E por último, a atração que relaciona a obra artística a seu público receptor. Em nenhum dos três contos a perfeição é atingida em sua plenitude: nas três relações simultaneamente; sempre que uma ou duas delas se realizam, outra é interrompida, rompendo a cadeia que formaria a tríade perfeita da relação autor, obra e receptor.
A primeira e a terceira instâncias parecem as mais relevantes, pois parece óbvio - na relação que Machado desenvolve com os leitores - que para ele não há obra sem receptores. O prazer poderia ser atingido, ainda que parcialmente, no próprio ato criativo, mas a sua plenitude dependeria também do ato receptor. Machado sabe que, na vida, não há relações perfeitas, assim como não há obra perfeita, e, dessa forma, sempre acaba deixando, de um modo ou de outro, alguma lacuna por onde possa escapar a última esperança de plenitude.
Vejamos, nas três histórias, a relação entre o compositor/escritor, seu processo criativo, seus amores e musas, e os receptores de suas obras.
Em “Cantiga dos Esponsais”, mestre Romão tem imenso amor pela música – “rege a orquestra, com alma e devoção” (p.386) –, que é capaz de causar-lhe profundas transformações: “Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro” (p.387). Mas não consegue produzir nada de original: “Alguns papéis de música; nenhuma dele...” (p.387); “Ah! Se mestre Romão pudesse seria um grande compositor” (p.387).
Ao perceber que chegava ao fim da vida, o maestro “teve uma idéia singular: – rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra” (p.388), e pegou da gaveta o canto esponsálico que guardava desde 1779. Pensando na imortalidade – “Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...” –, juntou todas as forças que lhe restavam para chegar ao canto final.
Enquanto tentava compor, “Pela janela viu (...) dous casadinhos de oito dias” (p.388) – recém casados como ele e sua esposa, quando havia composto o início do canto –, “debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas” (p.388). “Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...” (p.388).
No seguinte, o narrador descreve o processo criativo do maestro: “Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos”. “Não precisa ser uma coisa original, mas enfim alguma cousa, que não fosse de outro...” (p.389). Como não conseguia atingir a nota desejada, “Desesperado, deixou o cravo, pegou o papel escrito e rasgou-o” (p.389). Nesse exato momento, o casal não só estava abraçado, mas também olhava um para o outro: “a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo” (p.389). “Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem sabida, na qual cousa um certo trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurava durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou” (p.389).
O êxtase criativo do maestro foi facilitado pelo ato catártico da destruição da partitura – marcado pela desesperança, pela desistência da busca do canto perfeito e da própria vida –, mas, também, pelo olhar entre o casal. O olhar, instante de abandono de si mesmo no outro, e a incansável repetição do por parte de mestre Romão despertaram na jovem a música “nunca antes cantada nem sabida” (p.389). Este momento único, surgido na voz do outro (da jovem), possibilitado pelo olhar, seria o que Ricardo Piglia chamou de “deslocamento”: a capacidade do autor de condensar um sentido múltiplo em uma só cena, usando a voz do outro para expressar o que para ele seria indizível. A nota sonhada, inacessível e inexprimível, só poderia surgir na voz do outro. Houve aí, no entretempo criado pelo deslocamento do centro (do maestro) para a periferia (a jovem vizinha), um encontro perfeito com a unicidade, um momento de epifania condensando criação e morte em uma mesma cena. Mas o momento escapa, e a obra perfeita, mesmo que realizada, não se completa, pois, como não foi registrada, calar-se-á para sempre na garganta da jovem e não chegará ao público receptor, sinalizando a impossibilidade da completude.
As marcas do autor deixam-se revelar na aflição do ato criativo, e atinge seu ápice no gozo, no casamento perfeito, no encontro com o outro, na identificação do outro com sua obra. Não é à toa que em “Cantiga dos Esponsais”, a música do mestre se completa com a nota dada pela outra; pela outra que sentiu-se tocada pelas notas preliminares que ele mesmo escreveu. Ela, a receptora, foi tocada por ele, o autor, completando um o outro; e no momento em que ela se perdeu no olhar de seu amor, embebida nas notas do mestre, completou-se a obra. A obra se completou unicamente neste momento, para, a seguir, morrer, ab eterno, com autor que não a registrou.
Quanto ao conto “Um Homem Célebre”, parece que Pestana, personagem principal, pode ser encarado como a metáfora do próprio Machado de Assis. Pestana, assim como Machado, era um artista consagrado pelo público, “famoso autor de tantas polcas amadas” (p.498). Pestana, diferentemente de seu público, considerava sua produção medíocre e efêmera. Desejava compor grandes obras, ou pelo menos uma única como a dos compositores clássicos, dos quais ostentava uma galeria de retratos na parede, “postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho (...) aberto: era uma sonata de Beethoven” (p.498).
A criação artística para fins de consumo ordinário – “a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia” (p.498) –, causava-lhe frustração: “Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?” (p.499). “Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de ideia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a ideia esvaía-se” (p.498). “Se acaso uma ideia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar” (p.498).
Como Machado, Pestana possuía agilidade para criar; o fazer poético vinha-lhe com facilidade: “De repente” o clic: “uma inspiração real e pronta, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios” (...) “dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo”. “Compunha só, teclando ou escrevendo (...), sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.” “Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos quando voltou para jantar: mas já cantarolava, andando na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação” (p.498).
Percebe-se a satisfação de Pestana consigo mesmo, com a sua desenvoltura e domínio sobre o ato criativo. Gosta do que faz, e enquanto faz não consulta nem se preocupa com os mestres. Se reconhece no que produz, ainda que logo, ao olhar a galeria de celebridades na parede, suba-lhe à cabeça o senso crítico e julgue sua produção medíocre: “A obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias estava célebre. Pestana, durante os primeiros dias, andou deveras enamorado da composição (...). Não desgostou também de a ouvir assobiada... Essa lua de mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. (...) E aí voltaram as náuseas de si mesmo” (p.500).
De tempos em tempos, o editor de Pestana encomendava-lhe uma nova polca, “os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa” (p.500). Questionado sobre o que significava a última daquelas sugestões, o editor respondeu: “Não quer dizer nada, mas populariza-se logo” (p.500), o que pode ser uma crítica do próprio Machado à relação autor e editor.
Como acontece nos outros dois contos, Pestana busca no casamento a musa de que necessitava – “Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias” (p.502) –,  mas esta era uma união fadada ao fracasso, pois a moça era tísica: “Recebeu-a como a esposa espiritual de seu gênio. O celibato era, sem dúvida, causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo. (...) tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas”. O casamento trouxe-lhe felicidade, e “a felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração” (p.502), mas uma felicidade “restrita”, até mesmo frustrante, pois não mudou sua inspiração, muito menos sua produção artística: “Para que lutar? Vou com as polcas... Viva a polca!” dizia, tentando convencer a si mesmo. “...eterna peteca entre a ambição e a vocação...” (p.502). Vê-se que Pestana reconhece sua vocação, mas mantém-se frustrado por não deixar sequer uma composição imortal.
Com a morte da esposa, Pestana volta a perseguir o sonho de criar uma obra perfeita, mas com o futuro já marcado pela frustração e a impossibilidade de seguir a carreira: “o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música (...) que faria executar no primeiro aniversário de morte de Maria”. Depois, “Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda” (p.502). “Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart” (p.503).
No trecho seguinte o narrador descreve o processo criativo, expondo a suspensão entre prazer e frustração: “A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído” (p.503). Na missa de um ano da esposa “Não se pode dizer se todas as lágrimas (...) foram do marido, ou se algumas eram do compositor” (p.503) que não concluíra a obra, pelo menos, como desejara.
O compositor permaneceu frustrado e improdutivo durante dois anos, até que aceitou a encomenda de “vinte polcas durante doze meses”. E, “Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial” (p.503). Finalmente, reconhecendo que jamais comporia uma obra que julgasse perfeita, deleitava-se no encontro com a música de outros: “Já agora, (...) sempre que havia uma boa ópera, (...) metia-se a um canto, gozando aquela porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro” (p.503). “A fama de Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polca; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César” (p.504), mas, ao menos, agora regia de forma diferente ante a sua produção: “Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio”. Não seria esta a própria relação de Machado à sua obra?
Com o passar do tempo, Pestana adoece, e, como o mestre Romão de “Cantigas dos Esponsais”, prevê o seu fim, mas, diferentemente deste, não finaliza sua grande obra, e, conformado, apenas diz a seu editor: “como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas...”
O narrador parece fazer uma crítica quanto ao fato de Pestana ter vivido uma vida sem gozo: “Foi a única pilhéria que disse em toda a sua vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte (...); bem com os homens e mal consigo mesmo” (p.504).
Para fechar essas considerações sobre o estilo em Machado de Assis, não poderia escolher senão “O Cônego ou a Metafísica do Estilo”. Machado, ou o Cônego, em seu ato de criar, como no processo da “Criação” bíblica, pede o verbo, ou seja, a palavra. Também, não por acaso, invoca partes do “Cânticos dos Cânticos”, versos bíblicos assim chamados por serem considerados os mais belos entre todos os cânticos atribuídos ao rei Salomão, que clamam pelo casamento perfeito entre Deus e o homem: “Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem...” “Se encontrar o meu amor (o receptor), diga-lhe que estou a sua espera”. “Escutai, ao longe parece que suspira também alguma pessoa (o receptor)” (p. 571). “Sílvio (o substantivo) não pede um amor qualquer (p.571)”, pede Sílvia, o adjetivo, a musa inspiradora; “um certo amor nomeado e predestinado” (p.571). “Sílvio vai andando à procura da única” (p.571), “a destinada para ab eterno para este consórcio” (p.571).
Na criação do texto, substantivo e adjetivo, representados pelo casal Sílvio e Sílvia, “Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas redimidos com a paga.” (...) “Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu manto?” (...) Sílvia responde que “é o selo do seu coração”, e que “o amor é tão valente como a própria morte” (...) “Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe (o êxtase). A pena, cheia de comoção e respeito, completa o substantivo com o adjetivo. (...) irão juntinhos ao prelo, se ele (o autor) coligir os seus escritos, o que não se sabe” (p.573). Novamente amor e morte se condensam, e após a epifania do êxtase, abre-se a possibilidade do discurso do Cônego ir ou não para o prelo, ou seja, não se sabe se este momento perfeito se completará no encontro da obra com o público.
Ao finalizar a leitura de “O Cônego ou a Metafísica do Estilo”, impõe-se a seguinte questão: qual seria a razão do título “Metafísica do Estilo”? Se pegarmos a acepção do termo metafísica como “a chave do conhecimento do real, tal como este verdadeiramente é” (AURÉLIO), podemos pensar que Machado estaria dando ao leitor a chave do que é o estilo, ou, pelo menos, a chave do que para ele é o estilo. O que poderia levar a supor que esse conto revelaria o seu modo de criação, ou melhor, o seu estilo singular. Sintetizando, parece que esse conto não deixa dúvidas de que, pelo menos para Machado de Assis, o estilo estaria marcado no fazer poético pela forma como as palavras estariam entrelaçadas no texto. Estendendo essa noção de atração e casamento aos outros dois contos, adicionar-se-ia à busca pela estética textual perfeita, a busca da perfeição como um todo – nos três níveis mencionados no início deste trabalho: na relação criadora do autor e sua obra, nas relações afetivas inspiradoras da mesma e na relação autor e receptor.
Mas parece que Machado, produtor de tantas obras, admirado e reconhecido pelo público de seu tempo, apesar de almejar a perfeição, sabe-a inacessível, e a completude, inapreensível. Tanto é que a sensação de solidão de seus personagens e suas frustrações amorosas acompanham toda a obra deste escritor. Aparenta, também, saber que o sucesso passa pelo modo singular do fazer poético de cada autor e que esse fazer poético oscila entre a inspiração e o labor de um texto lapidável. Parece consciente do processo criativo como um todo, desde a relação cuidadosa com as palavras até à relação sofisticada com leitor. A preocupação com o fazer poético transparece em toda a sua obra, e, especificamente, nos três contos apresentados.
A partir desde ponto, passo a levantar conjeturas sobre o estilo em Machado de Assis, pois, ao trabalhar com textos requintados como os três contos citados, seria pretensioso afirmar ter encontrado marcas que desvendariam o estilo de Machado; mas talvez uma delas tenha se revelado de forma mais óbvia: a busca pela perfeição. Esta marca comportaria muitas outras conhecidas: a busca do casamento perfeito entre as palavras, nas relações afetivas ou na relação com o leitor. Essa busca pela perfeição poderia ter, por parte do autor, um objetivo mais ambicioso como, por exemplo, a permanência de sua obra ou a sua imortalidade como escritor excepcional. A interligação, o entrelaçamento, entre autor, obra e leitor seria elemento imprescindível para a superação do tempo e do espaço do autor, possibilitando sobrevida a seus textos. Seguindo esta linha de raciocínio, seria possível inferir que quanto mais o autor se aproximasse da perfeição textual, mais atrairia o leitor; selando (termo do “Cântico dos Cânticos”, escolhido pelo próprio Machado – p. 573) a relação amorosa: autor/obra/leitor. Os clímaxs – momentos de completude –, seriam também os momentos de unidade entre autor, texto e leitor; consequentemente, quanto mais clímaxs, mais possibilidades de fortalecimento dessa relação.
Nessa análise da busca do texto perfeito, o prazer contido no próprio ato de fazer a obra é o que moveria o criador. O desejo de bonheur, de satisfação, acompanharia todo ato criativo, onde inspiração e labor – como busca e esforço – se fundiriam quase que na perda ou no esquecimento absoluto de si mesmo. Acho que posso arriscar a dizer que esses três contos deixam claro que a relação de amor, de busca do outro, de atração incontrolável (como no ápice do ato sexual) é, para Machado, inseparável de seu processo criativo. Daí ser possível inferir que esse gozo, da proximidade da perfeição, é capaz de se reproduzir no gozo do leitor. Se o autor sente achegar-se à completude, Machado deixa crer que o leitor também se achegará. Estaria aí o casamento com o leitor. Seria neste casamento com o outro, no reconhecimento de si mesmo na obra de outro, que estaria o reconhecimento do público. Seria este processo de identificação do público com a obra criada que a conduziria à imortalidade. Mas o reconhecimento somente ocorreria se o criador chegasse à completude, à perfeição, ou próximo a ela, pois só assim ele seria capaz de conduzir o público pelo mesmo caminho que percorrera, mesmo que momentaneamente.
Mas, nem o prazer do autor em seu processo de criação nem o do leitor de sua época em sua recepção seriam capazes de garantir a imortalidade do texto. Machado tinha plena consciência de que a imortalidade da obra dependia do casamento ab eterno entre o autor e o público receptor, ou seja, a obra deveria atingir, também, o público do porvir. Portanto, somente a perfeição garantiria a permanência da obra no tempo. Apenas a obra que, em seu tempo, tangesse a perfeição poderia aspirar à imortalidade. E a única aproximação da perfeição, da completude, seriam os momentos de êxtase ou o momento da morte, ou seja, as beiras de abismos, momentos catárticos, da perda de controle de si mesmo, em que se mergulha em uma outra dimensão, no outro, na relação com o outro. Estes instantes, de alguma forma, inscritos na obra, que garantiriam a sua sobrevivência.
A busca por momentos perfeitos, de ápice, de clímax, de êxtase, catárticos, sejam nos encontros ou nos desencontros, nas realizações ou nas frustrações, seria o objetivo tanto dos criadores quanto dos receptores. Seriam esses os momentos onde se consumariam a atração, enfim, encontro simbiótico entre autor/obra/receptor, e, consequentemente, a promessa de ressonância da obra na eternidade.
Em última instância, talvez fosse o desejo da obra imortalizada que impulsionasse o labor poético de Machado de Assis. Se foi, não saberemos. Mas foram esses momentos de êxtase ou catárticos, momentos de tirar o fôlego, de silenciar ruídos à volta, de causar aflição tremenda ou desilusão profunda que tentei captar e demarcar nos contos aqui apresentados. Enfim, momentos di fusão no texto, de encantamento com a forma textual construída e a emoção por ela desencadeada que, para mim, indubitavelmente, são as marcas do estilo deste grande escritor brasileiro.

















REFERÊNCIAS

MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
PERES, Ana Maria Clark. Machado de Assis, Dom Casmurro. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.81-96.
________. Questões de estilo. in: Questões de literatura. São Paulo: UPE, 2003. p. 95-101.
PIGLIA, Ricardo. Uma propuesta para el nuevo milênio. Belo Horizonte/Buenos Aires: Caderno de Cultura, no 2, outubro, 2001
SANTIAGO, Jésus. Inconsciente e sintonia: uma questão para os usos da prática da letra. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.225-232.
MELAMED, Meir Matzliah: trad. Tora, a Lei de Moisés. São Paulo: Sêfer, 2004, p.647.

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