quarta-feira, 10 de julho de 2013

MITOS E PERSONAGENS NA ESCRITA DE MIA COUTO E GUIMARÃES ROSA



Raquel Teles Yehezkel







MITOS E PERSONAGENS
na escrita de Mia Couto e Guimarães Rosa




Trabalho de literatura comparada, da disciplina “Literatura Estrangeira em Língua Portuguesa”, ministrada pela profa. dra. Maria Zilda Ferreira Cury.                                                                              






Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 8 de novembro de 2006
 



mitos e provérbios na literatura:
referências para entender a obra de Guimarães Rosa e Mia Couto

 

O objetivo primeira parte deste trabalho é fornecer referências teóricas que facilitem a leitura de textos literários que proponham diálogos com mitos e provérbios da cultura popular, particularmente a obra de Guimarães Rosa e de Mia Couto. Buscar entender a utilização do mito e do provérbio – sua importância e função nas sociedades arcaicas e nas sociedades atuais – é essencial para a compreensão da obra desses autores.

O mito narra uma estória sagrada que remete sempre a uma suposta origem. Mas não relata apenas a origem do mundo e dos seres, também a maneira como uma determinada realidade passou a existir e em conseqüência da qual o homem se converteu no que é hoje.

Enquanto do homem moderno se considera constituído pela História Universal, o homem da sociedade  arcaica se proclama resultado de um certo número de eventos míticos. Os relatos míticos são importantes porque revelam modelos exemplares que fundamentam e justificam o comportamento e a existência dos homens. O mito tem a função de harmonizar o tempo presente com o tempo imemorial. Ao retomar um mito, o membro da sociedade recorda os feitos dos seus ancestrais – geralmente entes sobrenaturais – e ao reatualizá-los reforçam o fato de que a importância e o efeito dos mitos não estão desligados dos fatores temporais.
O mito não é um conhecimento ‘exterior’, ‘abstrato’, mas que é vivido: seja narrando ou executando um ritual. De uma maneira ou outra vive-se o mito através do poder sagrado dos eventos rememorativos ou reatualizados. Portanto, as reinterpretações dos mitos não lhes tira a substância mítica.

Se nas sociedades arcaicas o mito constitui uma história verdadeira que narra a existência e feitos de seres extraordinários, referindo-se a uma criação ou a um padrão de comportamento estabelecido, conhecer os mitos permite alcançar o conhecimento da origem das coisas, o que conseqüentemente possibilitaria o domínio e a manipulação de tais sabedorias com o fim de  justificar uma situação nova. Parece que é neste sentido que Guimarães Rosa e Mia Couto utilizam-se dos mitos, mas não com o intuito de justificar uma nova ordem, e sim de criar novas possibilidades de interpretar o mito e, conseqüentemente, a realidade; algo subversivo à ordem natural do mito ou da determinação de um provérbio. A escrita desses autores, elaborada de forma consciente, conduz o leitor à releitura da própria estrutura do mito – ou do provérbio –, revelando novos sentidos.

Assim como o mito, os provérbios e os aforismos – que seriam conhecimentos fragmentados, resíduos dos mitos – associam-se às narrativas orais, pois cabe à comunidade a função de recordação,  de propagação e de atualização de seus costumes e de sua cultura; e é a forma poética do provérbio que permite com que ele seja facilmente memorizado.

Costa Lima, ao tratar da questão dos mitos e dos provérbios em seu livro “Razão e Imaginação no Ocidente”, faz uma observação importante a respeito da incidência de aforismos na obra de Guimarães Rosa que pode-se estender aos textos de Mia Couto. Diz que o escritor mineiro utiliza o provérbio não tal qual o entendemos, pois este carrega em si uma resposta, o que ele faz na verdade é apropriar-se, aproveitar-se da estrutura poética destes para interligar idéias convencionalmente consideradas paradoxais, e não, explicá-las. Na busca de entender o processo criativo, Costa Lima faz uma divisão entre “plano da carência” e “plano da plenitude”. O primeiro trata do “corriqueiro, reduzido à condição variável e contingente; em si mesmo repregado” e o “segundo plano é ocupado pelas grandes perguntas que atravessam a existência das personagens”. Portanto, os mitos e os provérbios – talvez possa-se acrescentar os neologismos – seriam recursos literários que serviriam de mediadores entre a dimensão social e a dimensão cósmica: uma maneira de chegar ao indizível, ao não simbolizável, aos grandes questionamentos humanos não abarcados pela palavra ou pelo discurso como representação simbólica.

Ao ler Guimarães Rosa e Mia Couto, percebe-se com facilidade o quanto o trabalho de Mia Couto está enraizado à tradição e às narrativas comunitárias. A vinculação com esse tipo de narrativa não se dá à maneira dos contos de fadas – relatos que não modificam a condição do homem como tal, mas à maneira do relato mítico. Utilizando-se dos mitos, sem mais viver numa comunidade que se alimenta de mitos, eles são capazes de relacionar pólos contraditórios, trazendo à tona novos sentidos para os mesmos. Nem sempre se trata de destruir verdades estabelecidas, mas também de revelar facetas encobertas. Pode-se dizer que através de sua linguagem diferenciada, sofisticada, cuidadosamente elaborada, estes dois grandes escritores são capazes de conduzir o leitor a uma dimensão diferenciada da realidade.

“JOÃONTÓNIO” (in: Estórias Abensonhas), DE MIA COUTO
E “RIOBALDO” (in: Grande Sertão: Veredas), DE GUIMARÃES ROSA

Mia Couto e Guimarães Rosa reconhecem a fragilidade e as limitações do ser humano ao darem a voz principal da narrativa a personagens periféricos ou marginalizados, no caso das histórias supracitadas no título, a Joãoantónio e Riobaldo: seres ambíguos e fragmentados, envoltos em conflitos com a própria sexualidade e em busca de suas identidades. Nas duas histórias, Joãoantónio e Riobaldo são narradores, em 1a pessoa, e  falam de si, de seus desejos e suas aflições.

Os personagens centrais dos dois enredos – Riobaldo de “Grande Sertão: Veredas” (GSV) e Joãoantónio do conto homônimo –, apesar da posição periférica que ocupam na sociedade e do linguajar rudimentar, são personagens universais: seus conflitos e contradições revelam lados obscuros de suas personalidades e levantam questões inerentes ao ser humano. Representam o homem em busca de si mesmo e ambos estão envolvidos, na relação com o outro, com a questão da homossexualidade (mesmo que em GSV a atração por alguém do mesmo sexo acabe se resolvendo na revelação de que Reinaldo era Diadorim, isso não invalida o conflito da atração homossexual, já que Riobaldo acreditou durante anos que Reinaldo era homem e ainda assim amou-o intensamente).

“Joãoantónio” foi escrito em forma de monólogo, mas, como “Grande Sertão: Veredas”, poderíamos dizer que é uma espécie de “monodiálogo”, pois o narrador dirige-se a um interlocutor  – a quem chama de “mano” – aparentemente desvozeado.

O texto desse conto, assim como GSV, assemelha-se a um labirinto onde o narrador se perde e se acha; esconde e revela as pulsões mais primitivas do ser humano: amores, medos e desejos. Em ambos, o caráter mítico do texto se mostra através da aceitação, por parte dos personagens, de um destino inevitável, fora de seu controle, cujo sentido escapa à sua compreensão. Ainda e por enquanto: sou Joãontónio. Lhe conto, agora, a ficção da minha tristeza (p.88).

O tempo e o espaço dessas narrativas são o tempo e o espaço psicológicos, que ultrapassam a localização geográfica. O tempo é o do “eu” psicológico do personagem/narrador, que assume caráter alegórico, filosófico e poético. Joãoantónio debate consigo e com o tempo: Por enquanto, mano, ainda sou Joãoantónio (p.90). Como em GSV, é pelo não-lugar dos devaneios – cheio de voltas, de idas e vindas – que a narrativa transita. Mas volto aos começos, veja você, já eu rangia como uma curva, derraspado em filosofices. Agora recomece também você sua audição (p. 88).

Tanto Guimarães Rosa como Mia Couto usam metáforas como forma ambivalente e simultânea de criar novos sentidos, tornando as frases ambíguas. Paradoxos de idéias ou de palavras como – “em Joãoantónio” – “voz invisível”, digo/desdigo, masculina/feminino, rude/gentil, medo/coragem convivem lado a lado, separados por uma linha muito tênue. Contrastes que levam à suspensão de sentidos oscilantes entre real e irreal, homem e mulher, gentil e brutal, ser ou não ser. As transformações e adaptações vividas por Riobaldo e que Joãoantónio está vivendo em um certo “entretempo” (“no enquanto”) assemelham-se à trajetória humana – cabem conflitos, sonhos, brincadeiras, a busca e a fuga do outro e de si, a imprevisibilidade, a vulnerabilidade e as frustrações do “ser” no mundo -, sugerindo ser a existência um labirinto ou um “itinerário errante”.

Joãoantónio – assim como Riobaldo –, no processo de narrar seus conflitos, tange o conhecimento de si mesmo. A recordação leva-o ao conhecimento do que foi e do que se tornou e à “quase” afirmação de sua identidade.

A linguagem em ambos os autores é polissêmica, com grande variedade de sentidos. Há uma vasta exploração das possibilidades e da potencialidade da palavra. Exemplos em GSV: sussurruído, fechabrir, adormorrecer. Eu sei que isto que estou contando é muito dificultativo. Minto entrançado (p.32). Lembro, deslembro (p.42); em “Joãoantónio”: outrodizendo, digo e desdigo; penultimato; intacta e intacteável; calafrígida. Dela se soltava suspeita de brasas sob cinza (p.88).

Assim como em Guimarães Rosa, a escritura meticulosamente construída por Mia Couto está organizada em estruturas sintáticas nada ortodoxas que nos dão a impressão de serem simples e primitivas, mas revelam-se justamente o contrário. Esta construção sintática, tecida pelo autor, possibilita a geração de novos e de múltiplos significados, pois oculta desorganização e lacunas que criam paradoxos capazes de “revelar segredos”.

Para entender o texto desses autores em sua amplitude parece necessário por vezes abandonar a lógica e procurar por novos sentidos criados pela estética inusitada da linguagem. O fato estético, segundo Borges, “reside em la inminencia de uma revelación que no se produce”, ou seja, a revelação encontra-se no texto, mas não de forma óbvia. Ao ler “Joãoantónio”, pressente-se que há sentidos que podem ou não ser revelados em cada parte do texto. Assim como Guimarães Rosa, Mia Couto elabora uma narrativa onde as múltiplas “revelações” encontram-se suspensas, segundo Fantini, em “estado de latência – entre o texto e os sentidos que ele produz” –, e, portanto, podem ou não ser desveladas, dependendo da relação texto/leitor.

 

Bibliografia


COUTO, Mia. in: Estórias Abensonhadas, Joãoantónio.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Rio de Janeiro: Editora Perspectiva, 1987.
FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens.São Paulo:Ateliê, 2004. COSTA LIMA, Luiz. Razão e imaginação no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: Veredas.: Nova Fronteira, 1986.
VALENTINI, Nathália e YEHEZKEL, Raquel. in: Trabalho final em Grupo, da disciplina Tópicos em Literatura Guimarães Rosa, profa. Marli Fantini, Mitos em Grande Sertão: Veredas.  UFMG/FALE: 2005, 2o semestre.

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