quarta-feira, 10 de julho de 2013

O QUE É ESTILO?



Raquel Teles Yehezkel








O QUE É ESTILO?





Trabalho requisitado pela disciplina Estudos sobre Estilo, ministrada pela professora doutora Ana Maria Clark Peres Peres.                                                                              







Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 14 de setembro de 2006



Este trabalho tem como objetivo responder à pergunta: O que é estilo?, proposta por Ana Maria Clark Peres, professora do curso Estudos sobre Estilos, da Faculdade de Letras da UFMG. Poderia ser um trabalho simples, mas, devido à complexidade do assunto e à extensa bibliografia colhida, e correndo riscos que não deveria ousar, optei por um trabalho pouco mais pretencioso.
Folgarei se, ao final destas páginas, parecer que costurei uma colcha de retalhos, já que o que realmente temo é que os cortes e os remendos sejam tantos, que só se percebam retalhos, lacunas e pequenos lampejos do que deveria ser uma colcha bem trabalhada. Apesar do desafio, não tenho a pretensão de amarrar o assunto, apenas oferecer uma quantidade limitada de flashes que ajudarão a clarear, a mim mesma, um conceito tão complexo, plástico e paradoxal como o conceito de estilo. Será, sem dúvida, um trabalho fragmentado, como fragmentadas são as inúmeras acepções do termo.
Não posso me esquivar de perpassar pelas acepções de estilo fundamentadas em Aristóteles, Quintiliano, Buffon, Bally e Spitzer, mas não farei delas o centro desta dissertação. O centro em que pretendo gravitar é o gozo no manuseio da palavra, o prazer que leva ao burilamento, a debruçar sobre, a mergulhar em e emergir do mundo da linguagem.
Pode-se dizer que a primeira acepção de estilo venha da Antigüidade Clássica, da Grécia, quando, no século IV a.C, Aristóteles registrou-a no Livro III de sua “Arte Retórica”, ao falar sobre a léxis, traduzido para o português como estilo. Mas, segundo Jacyntho, poderia também ser traduzido por elocução, ou, mais precisamente, por dicção: “não há dito sem dicção, não há dicção sem dito” (LINS Jacyntho, p. 37). Aristóteles listou as técnicas do que seria um bom discurso, utilizando conceitos como: “fundo” e “forma”, respectivamente, tema e ornamentos – que serviriam para esconder a “verdadeira” intenção do orador; “desvio” e “norma” – o “bom” discurso deveria empregar “desvios da linguagem ordinária”, ou seja, desvios da norma; e o “ar estrangeiro” – utilização de palavras estranhas que agradariam e impressionariam o público. Nesta concepção de pensamento binário, constituído de contrapontos, estaria o motivo de “desuso” do termo estilo nos estudos literários, a partir de meados do século XX. Em “O estilo e sua imagem”, Roland Barthes propõe uma nova metáfora – “a cebola” – para substituir o antigo “fruto com caroço” empregada para designar os conceitos aristotélicos de “fundo” e “forma”. As camadas da “cebola” representariam o “folhado” do discurso, os movimentos das formas, um trabalho de transformação, onde não há um núcleo coeso e separado das “folhagens”. Recentemente, em um ensaio sobre “O estilo em Compagnon”, Georg Otte sugeriu substituir a perspectiva antagônica pela idéia de “complementaridade”, “fazendo com que as diferenças não mais sejam vistas como perdas em relação a um núcleo mínimo, mas como ganhos que enriquecem o conjunto” (OTTE, p. 27).
Desde o primeiro século a.C, já se pode definir, com mais precisão e com base na etimologia, a palavra stilus: “pedaço de osso ou madeira que de um lado tem uma ponta fina para escrever em tabuinhas de cera e do outro uma espátula para apagar”. Ainda assim, ela aparece registrada por Quintiliano, em “Instituiones Oratoriae”, com pelo menos cinco sentidos semelhantes, mas distintos: “o objeto/estilete, o gesto de escrever, o exercitar na escrita, o aprimoramento/refinamento do texto escrito, o próprio texto escrito com tudo que lhe é pertinente” (REZENDE, p.42). Podemos afirmar que “o amplo espectro de sentidos que hoje atribuímos a estilo resultou de motivação fundada no próprio uso que deste termo fizeram autores como os da antiguidade latina” (REZENDE, p.52).
Continuando o percurso do termo estilo diacrônicamente, no ano de 1753, M. de Buffon, naturalista, racionalista, especialista em Ciências Naturais, em sua posse na Academia Francesa, proclamou o famoso Discurso sobre estilo. Nele enfatizava o estilo enquanto trabalho racional, processo com uso de técnicas, construção em movimento, em contraposição à eloqüência natural e espontânea do homem comum. “O estilo é o que existe de singular, de genial, no homem comum. ...le style est l’homme même...” (BUFFON, p.30). Como se a escritura fosse o reflexo do autor e que ao desvendar o autor, devendar-se-ia sua escritura.
Na primeira década do sec. XX, fundada por Charles Bally, a estilística, ancorada em novos arcabouços teóricos, passou a ser o centro das atenções dos estudos lingüísticos, e “expressividade” e “afetividade” suas palavras-chaves. Afetividade como “manifestação natural e simultânea das formas subjetivas do nosso pensamento”. Expressividade como a capacidade de provocar emoção e de sugestionar, e, por isso, segundo Pierre Guiraud, poderia ser considerada a “herdeira da retórica”. A estilística tinha como objetivo principal estabelecer um sistema expressivo da língua francesa naquele momento, por meio do método descritivo e não normativo. Segundo Bally, caberia à estilística abraçar “toda a linguagem”, desde os sons até as combinações mais complexas, mas apenas a linguagem oral, por ela ser espontânea. Mais tarde, seus discípulos estenderam a disciplina para a literatura por julgarem-na “voluntária e consciente”, e, por isso, mais rica em recursos expressivos.
Leo Spitzer, como Bally, era estruturalista, mas, ao contrário deste, interessava-se principalmente pelo estilo na literatura. Buscava nos textos, pequenos detalhes, “desvios” (era leitor de Freud), insistências. Procurava por um detalhe inesperado, inusitado, que lhe provocasse “um clic”, e perseguia essas repetições – singularidade do autor – fazendo listagens que o conduziria a um “denominador comum”, à raiz psicológica, à alma do autor. Encontrado o autor, acreditava, encontrava-se também a “chave” para o texto.
Há muitas outras questões polêmicas envolvendo os estudos sobre o estilo. “O estilo é identidade e diferença ao mesmo tempo” (OTTE, p. 22). Baseando-me no capítulo “O estilo”, de Antoine Compagnon, em “O demônio da teoria”, ressaltarei apenas duas, por considerá-las mais relevantes para a teoria literária. Primeiro a questão da “ambigüidade” e da “plasticidade” do próprio conceito e do emprego do termo estilo, que oscilaria sempre entre a “necessidade” e a “liberdade”, já que o estilo possui um aspecto coersivo na medida que “obriga” o indivíduo a seguir certas regras que o identificam como membro de seu tempo e de sua coletividade, e, por outro, a liberdade que cada um tem de trabalhar seu próprio estilo, buscando uma espécie de marca que seria a assinatura que o distinguiria do outro e do sistema coletivo (que ao mesmo tempo tolhe e abriga). Segundo, a questão da “sinonímia”, conforme a qual “dizer várias coisas no mesmo estilo e dizer a mesma coisa em vários estilos são dois lados de uma mesma moeda”. Estas questões problemáticas levaram a lingüística, por volta de 1960, a desqualificar a estilística como um estudo científico.
Apesar das contínuas polêmicas envolvendo o conceito de estilo no âmbito da literatura e da lingüística, vários outros segmentos, populares e científicos, continuaram a empregá-lo com desenvoltura.  No final do século passado, as discussões sobre o estilo, que muitos pensavam agonizado, talvez morto e enterrado, insurgiram com força nos meios acadêmicos e literários de todo o mundo.
A acepção de estilo que toca na singularidade do indivíduo, que traz à tona a capacidade de invenção do sujeito, é apontada por Ana Maria Clark Peres como a mais atrativa. “Singularidade, invenção: estilo. Algo para além da escolha voluntária e consciente (...) Resultado, sim, de um trabalho, de uma lapidação, de uma satisfação, mas em outro nível. Algo que possibilita uma transmissão: que, diante de um estilo, o leitor também se sinta provocado a colocar algo de seu” (PERES, p.91). Cita, ainda, Machado de Assis que expressa muito bem essa singularidade criativa e o simbiótico relacionamento autor/leitor: “Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas (Machado, “Dom Casmurro”, in: PERES, p.91). A satisfação que o escritor sente ao escrever, ultrapassa o texto e provoca o leitor que também a sente. O poeta “goza”, encontra seu prazer na escrita, e aqui chegamos ao ponto que mais me interessa ao tratar de estilo.
Em Lacan, o termo estilo é abordado tanto do ponto de vista da literatura quanto da clínica analítica: “estilo diria respeito a um ponto de invenção a que se chega no final de uma análise” (Lacan, in: PERES, 84). Em “Questões de estilos”, ainda segundo Peres, paradoxalmente, “todo escritor teria estilo (um jeito, uma marca, traços identificatórios)” e poucos teriam estilo, pois poucos são os que chegam “a esse nível de invenção comparável ao ponto a que um sujeito chega no fim de sua análise”.
Podemos encontrar bons exemplos desses “pontos de invenções” a que Lacan se refere, nos poemas de Fernando Pessoa, nos quais Pessoa se auto-analisa, através da fragmentação de si mesmo em outros “eus”. Pessoa pensa Pessoa. Pessoa desconstrói Pessoa. Buscando “marcas de sua assinatura” em sua escritura, poderíamos sugerir o tédio, segundo Márcia Rosa, ou a dor de existir indicada por seu desassossego e por suas contradições. “Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se” (Pessoa, “Correspondência”, in: ROSA). O livro descosido não poderia ser o próprio autor fragmentado? “Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. (...) Vi a verdade por um momento. (...) E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido da vida é dormir” (Pessoa, “Livro do desassossego por Bernardo Soares”, in: ROSA). É o não viver; o escritor se esquivando da dor de existir como ser humano; buscando o gozo ao fugir do sofrimento, no estado de dormência. Nesse momento de epifania, de transitoriedade, o artista toca o real. “O artista precede o psicanalista ao atingir uma parte do real” (Freud, in: SANTIAGO, 225). O artista em sua prática produtiva “atinge algum pedaço do real, até então intocável, até então indizível, real que serve de base de orientação para a ação clínica do analista”. “O poeta (...), para evitar a dor de existir, acaba se tornando letra” (SANTIAGO, 225).
“As palavras têm também o valor de uma resposta diferenciada a uma dor que, como tal, é insituável, exatamente porque se confunde com a vida” (Michel Rey, in: BRANDÃO). E é na escritura que o poeta “constrói o seu oásis”, o seu gozo; é nela que ele passa a existir. Na palavra. Por meio dela, ele encontra o Outro em si mesmo, encontra o próprio descanso. O inconsciente é o discurso do Outro. É o deslocamento pelo qual “retorna a si mesmo pelo viés do outro, pela prova do estrangeiro” (Rey, in: BRANDÃO). E seria a arte, a criação – como uma experiência do gozo através da linguagem – que indicariam “a verdade de seus modos de satisfação”, segundo Ram Mandil (in: PERES, p. 85).
A escrita não é paralela à vida, não tem uma função meramente instrumental, mas tece-se com os fios da memória, os fios da fantasia de quem escreve, produzindo um nome e uma autoria que ultrapassam o mero nome civil de quem escreve. A construção de uma assinatura permite que se fale que o escritor nasce de sua escrita, é filho de sua escrita (BRANDÃO, p. 61)
“Fazer existir a língua segundo os ritmos que lhe sejam próprios (...) graças à dicção” (BRANDÃO, p.63), como também sugere Jacyntho. Simplesmente, graças à elocução, à dicção, ao estilo!
Assim sendo, a unidade do homem (do autor) não aparecerá de forma definida em sua obra, mas denotada. “Restaria apenas um traço mínimo e sutil do escritor na sua escritura; algo como o relevo da frase ou a sutileza, a complexidade do dizer” (ROSA, 287). Também “não se trata mais de reencontrar, na leitura do mundo e do sujeito, simples oposições, mas transbordamentos, superposições, escapes, deslizamentos, deslocamentos, derrapagens” (Barthes, in: ROSA, p.287).
Para finalizar, gostaria de levantar um problema relacionado às produções artísticas e à sua estreita relação com a questão do estilo na atualidade, a saber, a questão das indústrias de bens culturais que exploram a necessidade humana de cultura para fins econômicos e ideológicos, forçando o acarretamento de uma cultura de massa. Essa questão foi levantada por Adorno e discutida por Rodrigo Duarte no ensaio “A questão do estilo em Theodor W. Adorno”. Como foi dito anteriormente, a arte se nutre de um desejo de emancipação expresso na promesse du bonheur, ou seja, na promessa do gozo do ato produtivo. O artista, porém, necessita sobreviver em um mundo onde não é ele quem dita a moda, onde o estilo das produções criativas são guiados por padrões ditados por interesses econômicos da indústria de massa. A indústria passou a ser o financiador e, ao mesmo tempo, quem direciona a produção criativa. Ora, o artista tornou-se cliente das forças produtivas. Nesta relação de interesses contraditórios, ou ele entra no jogo do mercado ou é colocado à margem do sistema estabelecido. Assim, o artista vê-se castrado em sua viagem rumo à “felicidade prometida” pelo processo criativo – a promesse du bonheur. Para Adorno: “Raramente a grande arte esgotou-se na concordância do construto individual com seu estilo. (...) os construtos mais significativos são aqueles nos quais o sujeito e sua expressão não se encontram mesmo numa unidade compacta com o todo que a submissão estilística sugere” (Adorno, in: DUARTE, p.135). Adorno parece nos querer dizer que no passado o “estilo de época” desempenhava um papel semelhante ao que a indústria cultural exerce hoje, embora afirme que às vezes isto pôde e pode ser evitado pela “verve criativa dos grandes artistas”, de artistas com personalidade próprias e não funcionários da indústria cultural, pagos para criar por encomenda aquilo que interessa aos financiadores. “Só na criação autônoma o estilo pode adquirir sentido”.
À luz das acepções de estilo expostas neste trabalho, gostaria de reforçar a minha preferência, ao referir à estilo, à acepção que buscará na escritura as marcas que designarão o gozo do autor, o prazer que o move a trabalhar, e que, por essa razão, atingem o leitor de momentos a momentos. Essas marcas de “gozo” podem vir em frases concisas; no ritmo lento ou excitante, em pequenos detalhes como olhares, sorrisos, suores. Podem estar camuflados em traços que se esquivam aos personagens, em ambientações capazes de causar estranheza mesmo se aparentemente normais; em sensações de cheiros, sabores, de arrepios, tremores, medo, alegria, tensão no entretempo (p.388) de um momento epifânico. As marcas são como pontos de encontros, onde autor e leitor se surpreendem, e, como que encantados pela descoberta, se reconhecem numa espécie de junção. Dessas marcas, se separarão para exames mais distanciados, distintos e, novamente, se reencontrarão, sempre em momentos em que o gozo do escrita seja também o gozo da leitura – em forma de dor, de alegria, de luz ou de escuridão.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte política. Livro III. cap. I. Rio de Janeiro: Tecnoprint.
BALLY, Charles. Intelecto x afetivo: fragmentos/resumo. in: Traité de stylisique française.
BRANDÃO, Ruth Silviano. Tradução, travessia, assinatura. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p. 57-64.
BUFFON. Discours sur le style. Paris: Climats, 1992. p.17-29.
COMPAGNON, Antoine. O estilo. in: O demônio da teoria. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p.165-194.
DUARTE, Rodrigo. A questão do estilo em Theodor W. Adorno. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.129-142.
GUIRAUD, Pierre. A estilística em Bally. São Paulo, 1970. p. 74-98
LINS, Jacyntho Brandão. Arqueologia da léxis. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p. 29-37.
OTTE, Georg. A questão do estilo em O demônio da teoria de Antoine Compagnon. in: O Estilo na contemporaneidade.Belo Horizonte:Faculdade de Letras da UFMG, 2005.p.17-27.
PERES, Ana Maria Clark. Machado de Assis, Dom Casmurro. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.81-96.
________. A leitura obstinada e confiante de Spitzer. in: O infantil na literatura.
________. Questões de estilo. in: Questões de literatura. São Paulo: UPE, 2003. p. 95-101.
REZENDE, Antônio Martinez. Estilo em Quintiliano, palavra em transformação. in: O Estilo na contemporaneidade.Belo Horizonte:Faculdade de Letras da UFMG, 2005.p.41-53.
ROSA, Márcia. O poeta e a dor de existir. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.285-292.
SANTIAGO, Jésus. Inconsciente e sintonia: uma questão para os usos da prática da letra. in: O Estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p.225-232.

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