UMA REFLEXÃO SOBRE O PROCESSO CRIATIVO EM MACHADO DE ASSIS
EM "A CANTIGA DOS ESPONSAIS" E OUTROS CONTOS
Raquel
Teles Yehezkel
O objetivo deste
ensaio é fazer uma reflexão sobre o estilo em Machado de Assis. Para fazer essa
abordagem, foram escolhidos três contos do autor, a saber: “A Cantiga dos
Esponsais”, “Um Homem Célebre” e “O Cônego ou a Metafísica do Estilo”. A
motivação que levou-me a escolher estes contos foi a reflexão que eles contêm
sobre o processo criativo. “A Cantiga dos Esponsais” e “Um Homem Célebre”
discorrem sobre o processo criativo musical; o primeiro aborda a questão da
impossibilidade de expressão de um grande maestro, o segundo sobre a produção
musical medíocre de um compositor famoso que se sabe capaz de mais. “O Cônego
ou a Metafísica do Estilo” reflete sobre o processo criativo de um cônego
escritor. Dessa forma, os três giram em torno do mesmo tema.
Escolhi este
três textos porque os três deixam transparecer o processo criativo do autor.
Neles, Machado deixa-se entrever. Expõe seu desejo de unicidade com a obra e
com o leitor. Está claro que para Machado não há obra sem a recepção do leitor.
A perfeição pode ser atingida no ato de criar, no clímax atingido e expressos
nestes textos, mas como sabe que a obra perfeita inexiste, Machado nunca deixa
que esta obra perfeita chegue a seu público. Explico.
Por que, no
título, “Metafísica do Estilo”? Se pegarmos a acepção do termo metafísica como
“a chave do conhecimento do real, tal como este verdadeiramente é” (AURÉLIO), o
próprio Machado estaria dando ao leitor a chave do estilo, ou, pelo menos, a
chave para o que ele julga ser o estilo. O que poderia nos fazer supor e neste
conto revelaria o seu modo de fazer poético, ou melhor, o seu estilo próprio;
que, este conto não deixa dúvida que, pelo menos para Machado, o estilo seria a
marca do fazer poético, a busca na criação da obra, o próprio ato do processo
criativo que se inscreve na obra. Ou seja, na obra estão inscritas as marcas do
autor.
Mas Machado,
produtor de tantas obras, possuidor de um canal distributivo que o levava até o
leitor e desse tinha como receber o retorno, sabia que não há obra perfeita.
Que a unicidade é impossível. Como autor consciente de seu fazer poético, sabia
que o sucesso encontrava-se na busca por si só. Entre a inspiração e o labor do
texto lapidado. Então concentrava-se no próprio processo criativo. No fazer. A
preocupação com o fazer poético deixa-se ver em toda sua obra.
Dessa forma, não
poderia afirmar que encontrei a chave, ou a marca, que desvendaria a escritura
ou o estilo de Machado de Assis, mas talvez tenha encontrado uma delas. A busca
da perfeição, do tão falado casamento perfeito, o apelo ao leitor, sua relação
com os adjetivos e epítetos, tudo isto se fundiria em um objetivo maior: o texto
imortal. A perfeição formal seria tanta que o texto seria imortal. Mas a
perfeição formal, se dá apenas no encontro de pares perfeitos. Somente por meio
do casamento perfeito entre palavras, entre personagens, atingiria-se o
objetivo. Parece-me que toda a intenção de sua escrita é a busca da obra
perfeita, do casal perfeito, do entrelaçamento perfeito entre as palavras.
Assim, na medida em que o autor se aproxime da perfeição textual, onde as
palavras se atraem, buscam a harmonia e se encontrem em casamento perfeito,
atraí o leitor, que sentiria o mesmo processo de atração pelo texto. Enquanto
palavras se buscam, o leitor busca o texto. O clímax, o momento de unicidade,
seria também o momento de unicidade entre autor e leitor.
É claro que não
desprezaria o prazer contido no próprio ato da realização da obra, que é, em
primeira instância, o que moveria o criador. O desejo de bonheur,
formulado por ..., que acompanharia todo ato criativo, onde inspiração e labor
– como esforço, como busca –, se fundem quase que na perda ou no esquecimento
absoluto de si mesmo. Machado deixa claro esta relação de amor, de atração
incontrolável, comparada ao ato sexual, é inseparável do processo criativo.
Deixa claro também que é esta mesma atração que o leva a busca da unicidade, da
perfeição, que seria capaz de despertar no leitor a mesma sensação que o
criador teve ao produzi-lo. Se o autor fiz-lo bem, Machado deixa crer que o
leitor o receberá na mesma medida. Estaria aí o casamento com o leitor. E é
desde casamento com o outro, do reconhecimento do outro em sua própria obra,
que viria o reconhecimento público. E seria este processo de identificação do
público com a obra criativa que conduziria a obra a imortalidade. Mas isto
somente aconteceria somente se o criador chegasse ao orgasmo, à unicidade, à
completude, pois só assim ele seria capaz de conduzir o público pelo mesmo
caminho que ele mesmo percorrera.
Mas apesar de
todo o prazer, todo o gozo do autor em sua criação e do leitor em sua recepção
seriam capazes de garantir a imortabilidade da obra. Machado tinha plena
consciência de que a imortabilidade da obra dependia do casamento entre autor e
público receptor e para que este casamento garantisse a imortabilidade, a obra
deveria atingir também o público do porvir e para tanto apenas a perfeição
poderia garantir a durabilidade no tempo desta obra – mesmo sabendo que a
perfeição era inatingível –, pois ela depende da cultura humana, dos valores
estéticos de seu tempo, do pensamento do homem (colocar a frase do corcovado
571) apenas a obra que em seu tempo tangesse a perfeição poderia aspirar à
imortabilidade. E a única aproximação da perfeição, da unicidade seria o
momento do orgasmo ou o momento da morte, a beira do abismo, o momento da perda
do auto-controle, da perda de si mesmo, em que se mergulha em uma outra
dimensão, no outro, na relação com o outro. Estes momentos estariam inscrito na
obra. A busca destes momentos de ápice, de clímax, de êxtase, como se queira,
seriam os objetivos, as buscas tanto dos criadores quanto dos receptores,
seriam os momentos onde se realizaria o casamento e a promessa de sua
ressonância na eternidade, em última instância, o objetivo de Machado.
Para finalizar
as minhas ponderações sobre o estilo em Machado de Assis, não poderia escolher
senão O Cônego: Sílvio não pede um amor qualquer (p.571)”, pede Sílvia, o
adjetivo, a musa inspiradora; “um certo amor nomeado e predestinado” (p.571).
“Sílvio vai andando em à procura da única” (p.571), “a destinada para ab eterno
para este consórcio” (p.571). Machado pede o verbo, e não por acaso utiliza
versos bíblicos que clamam pelo casamento perfeito entre Deus e o homem, entre
o homem e a mulher, entre a terra e aquele que dela sobrevive: “Vem do Líbano,
esposa minha, vem do Líbano, vem...” “Se encontrar o meu amor (o receptor),
diga-lhe que estou a sua espera”.
“Escutai, ao longe parece que suspira também alguma pessoa (o receptor)”
(p. 571).
As marcas do
autor deixam-se revelar no prazer do processo criativo, o ato do
fazer poético e atinge seu ápice no gozo, no casamento perfeito, no encontro
com o outro, na identificação do outro com sua obra. Não é à toa que em Cantiga
dos Esponsais, a música do mestre se completa com a nota dada pela outra; pela
outra que sentiu-se tocada pela pelas notas preliminares que ele escreveu. Ela
foi tocada por ele, e no momento em que se perdeu no olhar de seu amor,
embebida nas notas do mestre, completou a sua obra. A obra apenas se realizou
totalmente no encontro com o receptor. Até então ela estava incompleta.
Notas de “Cantiga
dos Esponsais”:
Nomes dos
personagens:
Mestre Romão:
“ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado” (p.387)
“...um preto
velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe...” (p.387)
Apelo ao
leitor:
“Imagine a leitora...”
(p.386)
“Não lhe chamo a
atenção...” (p.386)
“Limito-me a
mostrar-lhes...” (p.386)
O lugar do
olhar:
“Nem para o
olhar das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo...” (p.386)
“...olhos no
chão...” (p.387)
“...o olhar
incendiava-se...” (p.387)
“Para completar a ilusão, deitava os olhos
pela janela para o lado dos casadinhos.” (p.389)
Relação com
adjetivo / epítetos:
“...que rege a
orquestra, com alma e devoção.” (p.386)
“(A esposa)
...não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática” (p.387)
“padecia do
coração: – moléstia grave e crônica.” (p.388)
O gozo da
produção artística:
“Tudo isso
desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e
todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro.”
(p.387)
“...se pudesse
acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsálico, começado três dias após
o casamento, em 1779.” (p.387)
Busca do
casamento perfeito:
“Alguns papéis
de música; nenhuma dele...” (p.387)
“Ah! Se mestre
Romão pudesse seria um grande compositor.” (p.387)
Percebendo que
chegava ao final da vida “teve uma idéia singular: – rematar a obra agora,
fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma
na terra”, e pegou da gaveta o canto esponsálico que guardava desde 1779.
(p.388)
Pensando na
imortalidade: “– Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um
mestre Romão...”
“Pela janela viu
(...) dous casadinhos de oito dias (recém casados como ele e sua esposa, quando
compôs o início do canto esponsálico), debruçados, com os braços por cima dos
ombros, e duas mãos presas.” (p.388)
“Aqueles chegam,
disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...”
(p.388)
“Voltava ao
princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta,
lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos.” “Não precisa ser uma coisa
original, mas enfim alguma cousa, que não fosse de outro...” (p.389)
“Desesperado,
deixou o cravo, pegou o papel escrito e rasgou-o.” (p.389)
“...a diferença
é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo.” (p.389)
“...a diferença
é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo.” (p.389)
Nesse momento, a
moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa,
inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem sabida, na qual cousa um
certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão
procurava durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a
cabeça, e à noite expirou.”
* O momento de
êxtase foi possibilitado pelo olhar (pelo momento catártico de rasgar a
partitura, de desistir de tudo, da busca, da própria vida), que despertou a
música “nunca antes cantada nem sabida” (p.389). O encontro com a unicidade, na
criação e na morte. O momento escapa e sinaliza a impossibilidade do amor, da
perfeição.
O autor envolto
com o processo criativo.
A
impossibilidade do casamento perfeito:
“Parece que há
duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não têm. As primeiras
realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o
impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão
era destas.” (p.387)
“Tinha a vocação
íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de
harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta
era a causa única de tristeza de mestre Romão.” (p.387)
“A causa da
melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir
o que sentia.” (p.387)
“tudo lhe saía
informe, sem idéia nem harmonia.” (p.387)
“A mulher, que
tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três (...) amava-o tanto como
ele a ela.” (p.387)
“Três dias
depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma cousa parecida com
inspiração. Ideou então o canto esponsálico, e quis compô-lo; mas a inspiração
não pôde sair.” (p.387-388)
Compara a
inspiração a um pássaro preso: “forceja por transpor as paredes da gaiola,
abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração ... encerrada sem
poder sair, sem achar uma porta, nada.” (p.388)
A obra
incompleta: “Algumas notas chegaram a ligar-se;” (p.388)
“Quando a mulher
morreu, ele releu as primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por
não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.” (p.388)
Refletindo sobre
a indisposição que sentia: “Está acabado”. (p.388)
“– Lá, lá, lá...
(era a nota derradeira escrita). Nada, não passava adiante. E contudo, ele
sabia música como gente. (...) Impossível! Nenhuma inspiração.” (p.389)
“Não precisa ser
uma coisa original, mas enfim alguma cousa, que não fosse de outro...” (p.389)
A solidão:
Mestre Romão:
“ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado” (p.387)
“A casa não era
rica; naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou
moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas.
Casa sombria e nua.” (p.387)
ASSIS, Machado. “Obra
completa”. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário