Raquel Teles Yehezkel
O
VENDEDOR DE PASSADOS
De: José
Eduardo Agualusa
Trabalho final
da disciplina “Literatura Estrangeira em Língua Portuguesa”, ministrada pela
profa. dra. Maria Zilda Ferreira Cury.
Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte 7 de dezembro de 2006
“O Vendedor de Passados” conta a história de Félix Ventura, um negro
albino que vive em Luanda, Angola, e que herda um rico patrimônio
histórico-cultural de seus antepassados adotivos. Munido de “amor pelas
palavras antigas” (p.26) e de saber (“estuda os jornais enquanto janta”;
“assinala-o”; “corta-o com cuidado e guarda-o num arquivo”; “grava programas de
TV”; “tudo o que lhe possa ser útil um
dia” p.15), vive de criar e vender histórias para pessoas destituídas de um
passado glorioso ou que precisem de um novo para reiniciar a vida (“Falta a
essas pessoas um bom passado, ancestrais ilustres, pergaminhos. Resumindo: um
nome que ressoe a nobreza e a cultura. Ele vende-lhes um passado novo em folha.
Traça-lhes uma árvore genealógica.” p.17).
Entre as pessoas que procuram Félix, há um “estrangeiro” (“Eu nasci
em Lisboa, sim, mas fui para Angola canuco, ainda nem sequer sabia falar.
Portugal era o meu país, diziam-me na cadeia, os outros presos, os bófias, mas
eu não me sentia português” p.191) que encontra seu cartão de visitas num hotel
(“Dê aos seus filhos um passado melhor.”p.192) e para o qual Félix cria uma nova identidade:
José Buchmann (“Tive muitos nomes mas quero esquecê-los todos. Prefiro que seja
você a baptizar-me.” p.18 “Comecei a
trabalhar como repórter fotográfico e durante anos, décadas, percorri mundo, de
guerra em guerra, tentado esquecer-me de mim”; “A minha vida é uma fuga.”
p.191). Este estrangeiro incorpora a nova identidade com tamanha crença e
intensidade que percorre os lugares por que passaram seus antepassados, criados
por Félix, reconstruindo túmulo, recolhendo fotografias e fabricando documentos
que confirmassem sua suposta ascendência. Assim, transforma o passado numa
construção do presente e a história fictícia em vida real, metamorfoseando-se
de corpo e alma (“Vejo-o agora , dia sim, dia não, a entrar pela porta de
camisa de seda, em padrões coloridos, com gargalhada larga e a alegre
insolência dos naturais do país” p.65; “Serve-se agora de um ritmo luandense”
p.59; “Vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim um estrangeiro a
imitar José Buchmann. Porém, se fechar os olhos para o passado, se o vir agora,
como se nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele – aquele
homem foi José Buchmann a vida inteira.” p.65;) em autêntico nativo de Angola,
mais que os próprios angolanos assimilados e enamorados pela cultura européia
(“Eu precisava que o próprio Félix acreditasse na minha biografia. Se ele
acreditasse nela toda a gente acreditaria. Hoje, sinceramente, até eu
acredito.” p.190).
“O Vendedor de Passados” revela-se como uma forma de resistência e
uma crítica arguta à sociedade angolana em período de construção de si mesma e
de desencanto com o destino de Angola pós-independência (1975): uma nação sem
memória, onde a história está se fazendo, se escrevendo; onde se perderam, no
passado, dialetos, tradição oral e costumes ancestrais. Como afirmou Carmen
Lúcia Secco: ao fazer “dialogar o imaginário e o fictício, a literatura se
institui como um espaço simbólico capaz de possibilitar a catarse desses
problemáticos do passado” (Secco in CAMPOS: p.273); e é neste espaço fictício e
lacunoso que Félix Ventura vai construindo a sua memória e a memória de seu
povo.
O autor, José Eduardo Agualusa, nasceu em Huambo, Angola. É filho de
pai angolano e de mãe brasileira. Viveu alguns anos da adolescência no Rio de
Janeiro e estudou em Lisboa. É agrônomo, jornalista e escritor. Como na vida do
autor, pode-se também detectar em seu texto inúmeras referências pluriculturais
(“Em Lisboa, a luz, no fim da primavera, debruça-se alucinada sobre o casario,
e é branca e úmida, um pouco salgada. No Rio de Janeiro, naquela estação
intuitiva à qual os cariocas chamam outono, e que os europeus afirmam com
desdém ser puramente imaginária, a luz torna-se mais branda (...) Na floresta
de Taman Negara, na Malásia, a luz é uma matéria fluida, que se cola à pele e
tem cheiro e sabor. Em Goa, é ruidosa e áspera.” – p.54). Assim sendo, não se
estranha que “O Vendedor de Passados” não seja um texto ingênuo e de fácil
leitura, ao contrário, é um enredo cheio de nuances e de revelações
inesperadas. Revelações expressas no próprio enredo em que ao tom político
mistura-se a poesia e na linguagem que escolhe vocábulos estranhos à língua
portuguesa. Trata-se de um escritor consciente de seu fazer poético e de sua
posição no mundo (o que envolve a discussão sobre o ponto de vista que, desde o
início, é colocada pela narrativa): ao mesmo tempo periférica e central; de
alguém que viveu na África, no Brasil e na Europa, que tem a história do outro
para contar e que, num esforço de transposição, tenta se colocar no lugar desse
outro para contar suas histórias (“Um exercício interessante é tentar ver os
factos através do olhar da vítima. Por exemplo, o peixe que estamos a comer...
Já tentou ver este nosso jantar na perspectiva dele?” p.39-40).
A primeira grande surpresa do enredo surge logo de início, quando se
questiona a identidade do narrador da história. Há um desconforto por não se
poder decifrá-lo com segurança. O primeiro capítulo apenas oferece pistas sobre
a identidade desse narrador que só se revela como “osga” no capítulo seguinte,
quando diz que não costuma freqüentar uma parte da casa, pois ignora “se as
osgas fazem parte da dieta dos morcegos. Prefiro continuar sem saber” (p.10).
Segundo o “Dicionário Aurélio”, a osga é um réptil, tipo lagartixa,
“originário da África e introduzido no Brasil com o tráfico de escravos.
Inofensivo; tem coloração cinza-brancacenta. Muito comum nas regiões costeiras,
freqüenta habitações humanas, onde se reproduz, e se alimenta de pequenos
artrópodes, que seleciona na luz, ao anoitecer”. Enfim, um ser, como o
protagonista, sem cor definida.
A osga é um narrador complexo, camuflado, dissimulado, cheio de
contradições. Na voz da osga, ouve-se ela dizer que conheceu, “até agora” (em
outras vidas, parece, pois nessa, ela diz, nunca saiu da casa de Félix Ventura:
“Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí.” p.3), lagartixas de todos os
cantos do mundo: Índia, Paquistão, China, Boston, inclusive uma que “vendia
flores em Belo Horizonte” (p.43); “dezenas de lagartixas, de umas cinco
espécies, não sei bem, a biologia nunca me interessou.” (p. 43) Ironia de um
autor agrônomo e silviculturista que conhece a natureza em detalhes?
A princípio, a osga é um narrador onisciente, que tudo vê. Observa o
dono da casa: há momentos em que se identifica com ele e outros em que o
critica (ao falar que conheceu uma moça extraordinária, Ângela Lúcia, Félix a
descreve como “uma espécie de anjo iluminado”, mas a osga, sarcasticamente,
ironiza o comentário: “Supus um lustre. Acho que Félix exagerou um pouco. Numa
festa, perdida entre o fumo e o tumulto, não teria reparado nela” p. 53, para
logo a seguir, no final do mesmo capítulo, concordar com Félix: “Tinha a pele
iluminada, os belos olhos rasos de lágrimas” p.56. Ângela Lúcia era realmente
um “Anjo Iluminado”).
A osga é um narrador crítico e sarcástico, escuta e sabe de cor a
letra do disco em que na capa “há o desenho de uma mulher de biquíni, negra e
bonita”: Dora, a Cigarra – Acalanto para um Rio – o Grande Sucesso do
Momento, de uma cantora brasileira” que, supõe, “conheceu alguma
notoriedade nos anos setenta” (p.3), para logo a seguir ironizar, comentando
que Félix ao receber moças aos sábados, estas não encontravam nenhum disco de
cantores angolanos, “sucesso do momento”, apenas discos raros como os de
músicas brasileiras ou cubanas. Mas a osga é também um narrador lírico e
sensível, capaz de emocionar-se com pequenos acontecimentos do cotidiano.
Apesar de dizer que o entardecer “É um espetáculo sempre idêntico” (p.3),
comove-se todos os dias como se fosse a primeira vez: “Gosto de ver as
labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles,
sacudindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas” (p.3).
A iniciativa de dar a voz da narrativa a um animal asqueroso, que
vive às margens, em fendas úmidas e escuras e que só se revela nas sombras da
noite sugere a escolha do autor por contar sua história pelo viés de um olhar
marginal. A revelação desse ser estranho dá-se através de sua relação com outro
personagem tão marginal quanto ele, Félix Ventura, o dono casa em que a osga
vive. Félix é um negro albino, como a osga, de cor indefinida, de origem
indecifrável, pois foi encontrado na porta da casa de Fausto Ventura, deitado
sobre uma pilha de livros de Eça de Queirós: o esplêndido berço português! De
seu pai adotivo, Fausto Ventura, outra figura marginal: “alfarrabista por
distração” que “orgulhava-se de nunca ter trabalhado na vida” (p. 25), Félix
herdou o sobrenome, a casa, um falso retrato do bisavô, um cadeirão de verga
vindo do Brasil (trazido pelo bisavô, comerciante de escravos), uma biblioteca,
o gosto pelas palavras e um passado marcado por uma herança cultural
colonizadora e escravista.
Utilizando a perspectiva teórica de Ricardo Piglia sobre as vozes da
margem na literatura, em “Una propuesta para el nuevo milênio” –
Podemos decir si encontramos otra voz, otra
enunciación que ayuda a narrar son sujetos anónimos que están ahí para señalar
y hacer ver. La verdad tiene la estructura de una ficción donde otro habla.
Hacer en el lenguaje un lugar para que el otro pueda hablar. La literatura
seria el lugar en el que siempre es otro el que viene a decir (in: “Margens”. Caderno
de Cultura, n. 2, p.3) –
e de Homi Babha,
que interroga a questão da identidade pelo viés da divergência de interesses
entre os diversos segmentos da sociedade na institucionalização e na construção
da história (in: “Interrogando a identidade – Frantz Fanon e a prerrogativa
pós-colonial”), pretendo sustentar que embora o enredo se passe na África e
envolva personagens marginais, “O Vendedor de Passados” é uma história criada
de forma consciente e bem tecida, que mistura harmonicamente poesia e política
(“Ninguém sabe, ao certo, quantas minas foram enterradas no chão de Angola.
Entre dez a vinte milhões. Provavelmente haverá mais minas do que angolanos.”
p.11) e que trata de questões universais, como a busca de identidade e o limite
tênue/fluido entre fronteiras políticas, sociais e raciais. Representando sua
universalidade, o enredo recortado, fragmentado, com oscilações entre sonho e
realidade, passado e presente reflete com destreza a situação conflituosa do
homem miscigenado e globalizado da atualidade, que transita entre diferentes realidades
geopolíticas, espaciais e culturais, e talvez por isso conviva com a
impossibilidade de reconhecer-se no outro. Especificamente, o enredo trata de
cidadãos deserdados de direitos político-sociais (José Buchmann e Ângela
Lúcia), de seres marginais (a osga e Edmundo Barata dos Reis), de um país
(Angola) e de lugares (Luanda, Chibia, Gabela) periféricos, todos em busca
contínua da própria identidade; e que, por conter inúmeras nuances – como no
caso de Angola, de Félix Ventura, da osga, de José Buchmann –, esta identidade
acaba sempre lhes escapando. É uma narrativa plurifocal em que as histórias
principais se alternam e dialogam por um processo de encaixe, que, segundo
Carmem Lúcia Secco (in: CAMPOS, p.275), é comum às narrativas da oralidade. As
histórias das personagens se desenvolvem ora paralelamente, ora
entrelaçando-se, amarrando-se de forma magistral e definitiva no final. Como o
próprio narrador diz: as histórias acabam se encaixando.
Em síntese, parafraseando Fanon, eu diria que a literatura (ele
disse “a psiquiatria”) é a técnica “que tem como meta permitir que o homem não
se sinta mais um estranho em seu ambiente”; que o negro (Fanon, na Argélia,
disse “o árabe”), “permanentemente estrangeiro em seu próprio” território
(Fanon disse país), “vive em um estado de absoluta despersonalização...” (Fanon in: BABHA. Interrogando
a Identidade. p.71); e que José Eduardo Agualusa utiliza-se de seu saber e de
seu fazer poético para criar ficções de seres individuais, bem tecidas umas às
outras “a ponto de nos dar”, por intermédio de suas personagens, “o que parece
ser um passado comum, uma história coletiva” de seu povo. Pois, segundo a
romancista Elizabeth Costello, não seria o passado a história? “E o que é a
história senão um relato feito de ar que contamos a nós mesmos?” (Costello, in:
COETZEE, p. 45). “O romance tradicional é uma tentativa de entender o destino
humano caso a caso...” Assim sendo, “como a história, o romance é um exercício
de tornar coerente o passado” (Idem, p.46) e – embora seu romance pareça
fragmentado e incoerente, como a vida de suas personagens – José Eduardo
Agualusa faz isto muito bem.
Fazendo uma analogia entre a ficção e a realidade, pode-se dizer que
em “O Vendedor de Passado” o autor faz metaliteratura, pois ao mesmo tempo em
que orquestra seu texto, Félix Ventura compõe sua história. A construção de
José Eduardo Agualusa é em princípio a desconstrução da História, pois há nela
uma inversão dos valores conceituais de verdade histórica baseada em fatos.
Retomando os conceitos teóricos de Ricardo Piglia (a voz
da margem, que fala através da voz de outro) e de Homi Babha (que interroga a
identidade pelo viés das contradições de interesses na institucionalização da
História), gostaria de analisar a questão do narrador/osga sob a luz desses
conceitos. Apesar da osga ocupar um lugar marginal segundo a concepção de
Piglia, ela não seria assim tão marginal se analisada sob a concepção de Babha.
Pois, segundo esta, a osga, por ser dono da casa, “a própria casa”, testemunha
da história, ocuparia o lugar do “eu” institucionalizado, portanto, não seria
de todo marginal. A casa é dela (ou do albino, dependendo do ponto de vista) e
como ela mesma diz: ela é a própria casa, ou seja, é o espaço
institucionalizado, que, por inferência, poderia também ser Angola. Ela, o
albino e a casa, juntos, compõem o espaço que detém história e memória
cultural, mesmo que construída de forma falseada. Afinal, ao contrário de José
Buchmann e de Ângela Lúcia, que foram deserdados do passado histórico da nação,
os três já viveram outras tantas histórias (a osga já foi jovem e um velho que
chegou aos 100 anos; o albino é herdeiro e fabricador de história; a casa está
lá há gerações); há gerações que eles ocupam esse espaço, mesmo que seja um
espaço ficcional. Quem está em busca de sua identidade e de seu lugar na
história são o estrangeiro e sua filha Ângela Lúcia que, no percurso do enredo,
desconhecem seu passado comum.
“O espaço familiar do outro desenvolve uma
especificidade histórica e cultural gráfica na cisão do sujeito migrante ou
pós-colonial” (BABHA: p.80). “Ver uma
pessoa desaparecida” ou “enxergar sua invisibilidade” – como acontece com a
osga, que tudo vê; que apesar de estar na margem dialoga com o centro, com o
criador de identidades –, seria, segundo Babha, enfatizar a demanda do sujeito
(a osga) por um ponto de presença que manteria sua posição enunciatória
privilegiada enquanto sujeito (Idem: p.80). Acontece que a
osga/albino/ficcionista, apesar de criadora do discurso ficcional,
paradoxalmente, não consegue desvendar as identidades e histórias das
personagens, não podendo assim afirmar sua posição de sujeito onipresente,
mesmo enquanto narrador de 3a pessoa, detentora de posição
enunciatória privilegiada.
Levanta-se então a seguinte questão: será que o narrador
não enxerga o todo por que a pessoa/personagem sem identidade e aparentemente
sem marcas passaria despercebida?, deixaria de chamar a atenção?, não teria uma
história? Não, nem o estrangeiro nem a jovem – ou qualquer indivíduo – deixam
de possuir uma história por terem um passado ou um rosto desconhecido. Pelo
contrário, o desconhecido chama a curiosidade e a especulação sobre si e, no
enredo, causa frustração ao narrador/ficcionista que não consegue apreender o
todo. Também torna-se difícil para o leitor apreender o enredo como um todo
durante sua leitura, e, simultaneamente, a essência da osga/narrador: ela (ou
seu discurso) não seria tão marginal como pareceria sob o conceito de Piglia
nem tão institucional como pareceria sob o conceito de Babha. Enfim, a natureza
da osga/narrador escapa, mostra-se ambígua, inapreensível, instável como a
própria natureza humana.
O todo do enredo apenas revela-se ao leitor e ao
narrador/ficcionista no fim de uma intricada trama, já que o narrador
(Félix/osga) é também personagem da história que está se criando. A partir
disso, pode-se inferir que, como Félix Ventura, os construtores de histórias
são personagens da vida e por isso incapazes de abarcar o todo. Podem apenas
costurar fragmentos, partindo do fim, da construção para trás: do agora tecer o
ontem, reconstituindo o passado para sempre perdido; e como o passado não é
real, não acontece no agora, essa reconstituição, como no romance de Agualusa,
será sempre ficcional.
“O
Vendedor de Passados” é um romance universal, com uma dicção compatível com
nosso tempo, que deixa emergir do texto, com incrível habilidade, a condição
fragmentada e irreconstituível da trajetória humana. Uma prodigiosa metáfora da
vulnerabilidade do homem e da própria existência!
ANEXO
Listagem
– e pequenas análises de frases do livro –
que
exemplificam as relações traçadas neste trabalho
O ALBINO / OSGA
A relação entre Félix Ventura e a osga parece ser a de uma pessoa
consigo mesma. É como se a osga – um narrador onipresente que tudo vê – se
inrrompesse mesmo quando não chamada. Como se fosse uma outra parte do albino,
o seu inconsciente. E, assim sendo, às vezes eles se identificam como um,
outras eles se repelem como estranhos.
- “– Péssima pele, a sua. Devemos ser da mesma família.”, disse Félix à osga. “Estava a espera daquilo. Se conseguisse falar teria sido rude.” (p.5), a osga comenta.
- “Sou um homem sem cor – me disse –, e, como você sabe, a natureza tem horror ao vazio. (...) A pele brilhava, cor-de-rosa, coberta de suor. Apiedei-me dele (...) – O meu problema não é o sol! – retorquiu. – O meu problema é ausência de melanina. – Riu-se: – Já reparou que tudo o que é inanimado descolora ao sol – mas o que é vivo ganha cor?” (p.85-86) “Faltava-lhe alma, a ele, faltava-lhe vida?! Neguei com veemência. Nunca conhecera ninguém tão vivo. Parecia-me até que havia nele nem digo vida, mas vidas a mais. Nele e em redor dele.” (p.86) Não seria o albino a representação de Angola? Negro e branco ao mesmo tempo. Cor indefinida. O sol não é o problema, nem para o Albino nem para Angola, mas a ausência de um outro fator, falta algo, há lacunas, falta o outro (representado pela osga). Seria um passado de conflitos? Afinal, o narrador dá seu testemunho de nunca ter conhecido alguém tão vivo, “vidas a mais”, “nele em redor dele” (p.86).
- “...contou-lhe que voltara a sonhar comigo.” (p.89). Félix conta à Ângela Lúcia que voltou a sonhar com a osga. Quando ela pergunta, insistentemente, se ele sabe quem a osga é, o albino responde: “– Não sei quem é. Mas se sou eu quem o sonho posso dar-lhe o nome que quiser, não achas?, vou chamá-lo de Eulálio, porque tem o verbo fácil.” (p.89). Seguindo o raciocínio anterior, Félix tem o verbo fácil? Angola tem o “verbo fácil”? a tradição oral, a alegria mencionada anteriormente.
- Ao falar da infância no interior – poderia ser a infância de Angola? –, na fazenda que o pai herdou do avô, Félix diz: “Brincava o dia inteiro com os filhos dos trabalhadores, mais um ou outro menino branco, dali mesmo, meninos que sabiam falar quimbundo.” (p.92) “A minha infância está cheia de bons sabores. Cheira bem a minha infância.” (p.93) “Não consigo imaginar o Paraíso sem galinhas.” (p.97) Às lembranças de Félix, a osga comenta: “Invejo a infância dele. Pode ser falsa. Ainda assim a invejo.” (p.97)
- “Tenho sido feliz depois disso, inclusive agora, neste pequeno corpo a que fui condenado, enquanto acompanho, num ou noutro romance medíocre, a felicidade alheia. Na grande literatura são raros os amores felizes.” Após passar por vários períodos de sua história, estaria Angola presa, como a osga, em uma estrutura geoespacial à revelia da disposição territorial de seus povos?
- “Não posso regressar às Mil e Uma Noites mas em contrapartida venho descobrindo novos escritores.” (p.101)
- “Contou-me, na última vez que nos sonhamos...” (p.145) Neste trecho, a simbiose entre o albino e a osga é expressa pela primeira vez de maneira clara na estrutura gramatical da sentença.
- No final do livro o narrador não é mais a osga, é o próprio Félix: “Encontrei esta manhã Eulálio morto” (...) “com um enorme escorpião ... preso entre os dentes. Morreu em combate, como um bravo, ele que não se achava corajoso.” (p.197) “Eulálio, como eu, não apreciava o sol.” (p.197)
CASA/ANGOLA
·
Falando
sobre a casa em que vive e sua relação com ela, a osga diz: “A casa respira.
Ouço-a toda a noite a suspirar. As largas paredes de adobe e madeira estão
sempre frescas, mesmo quando, em pleno meio-dia, o sol silencia os pássaros,
açoita as árvores, derrete o asfalto. Deslizo ao longo delas como um ácaro na
pele do hospedeiro. Sinto, se as abraço, um coração a pulsar. Será o meu. Será
o da casa. Pouco importa. Faz-me bem. Transmite-me segurança.” (p.9)
- O soprar da brisa que agita os espanta-espíritos de cerâmica, suspensos no teto da varanda da casa de Félix, produz “um límpido rumor de água. E isso faz com que recorde, sempre que a brisa sopra, e a esta hora, graças a Deus, sopra sempre, a secreta natureza desta casa: Um barco (cheio de vozes) subindo um rio.” (p.79) Qual a natureza secreta da casa? Um barco cheio de vozes, subindo um rio? Seria esta uma dica para apontar a casa de Félix como a representação de Angola? Uma casa cheia de fendas, com paredes úmidas, como a costa de Angola, que vê “o negro do mar” e que recebe a sua brisa? Uma casa, que, como Angola, abriga diferentes vozes expressas pelas personagens que a visitam? Paredes e personagens que, como Angola, têm medo de enfrentar seu passado? “–Basta! Não quero que as suas memórias deixem esta casa suja de sangue.” (p.82) foi o comentário de Ângela Lúcia quando José Buchmann iniciou seu relato de fotógrafo de guerras. Sobre assunto semelhante, Mia Couto expressou sua preocupação em relação ao passado recente de Moçambique, em palestra proferida no Brasil em 1997. “Moçambique mostrava-se uma nação sem memória, sem passado, onde ninguém mais falava das guerras. Era um país em viagem, em construção, voltado, apenas, para os investimentos modernos, para o futuro...” (SECCO: 273)
- Sobre o ex-agente, Edmundo Barata dos Reis, que apareceu na casa, Félix diz: “– Luanda está cheia de pessoas que parecem muito lúcidas e de repente desatam a falar línguas impossíveis, ou a chorar sem motivo aparente, ou a rir, ou a praguejar.” (p.162)
METALITERATURA
Agualusa faz metaliteratura ao discutir o fazer literário no enredo
e ao colocar um personagem, Félix Ventura, que, como ele, está escrevendo uma
história. O modo desse fazer literário é assinalado ao longo de todo o livro.
- Na página 50 já há uma referência às Padarias União Marimba, patrocinadora da emissão de músicas que em sonho o narrador ouviu de um rádio pendurado no pescoço de um cão vadio. Apenas, no final, no capítulo sobre o ministro, esta referência se encaixará como parte das posses do Ministro que virá encomendar um passado mais digno, condizente com sua situação presente.
- Na página 74 o narrador faz referência à uma apresentação de um romance a que Félix compareceu, de um escritor da diáspora: “Era um sujeito quizilento, um indignado profissional, que construíra toda a sua carreira no exterior, vendendo aos leitores europeus o horror nacional. A miséria faz imenso sucesso nos países ricos.” O apresentador era um poeta local, deputado de um partido maioritário que, após alguns elogios, como que ofendido na dignidade de seu país, questiona o escritor: “– Nos seus romances você mente propositalmente ou por ignorância?” Houve risos e murmúrio de aprovação por parte da platéia, ao que escritor contra-atacou sarcasticamente: “Sou mentiroso por vocação. Minto com a alegria. A literatura é a maneira que um verdadeiro mentiroso tem para se fazer aceitar socialmente.” Disse ainda que a ditadura é um sistema em que “existe apenas uma verdade, a verdade imposta pelo poder.” “A verdade, disse, é uma superstição. A ele, Félix, impressionou-o esta idéia.” (p.75) Aqui Félix observa: “Acho que aquilo que faço é uma forma avançada de literatura. Também crio enredos, invento personagens, mas em vez de os deixar presos dentro de um livro dou-lhes vida, atiro-os para a realidade.” (p.75).
- Falando sobre o professor Gaspar, comentou: “comovia-se com o desamparo de certos vocábulos. Dava com eles abandonados à sua sorte, nalgum lugar ermo da língua, e procurava resgatá-los. Usava-os com ostentação e persistência que consternava uns e desconcertava outros.” (p.26)
- Félix, referindo-se à osga (o subconsciente do ficcionista?), diz: “vou chamá-lo de Eulálio, porque tem o verbo fácil.” (p.89)
- “Em criança, ainda antes de aprender a ler, passava horas na biblioteca da nossa casa, sentado no chão, a folhear as grossas enciclopédias ilustradas.” “Mais tarde, na escola, refugiava-me nas bibliotecas para fugir às brincadeiras sempre brutais com que os rapazes da minha idade se entretinham.” (p.101) Poder-se-ia fazer uma correlação desta situação à intelectualidade que eventualmente tenha se “escondido entre livros” para fugir à brutalidade das lutas em Angola?
- “Talvez ela (Ângela Lúcia) tenha razão e o importante seja dar testemunho não das trevas, como eu tenho feito, e sim da luz. (...) Erguendo os olhos não vemos a lama, não vemos os pequenos seres que combatem no meio da lama. O que lhe parece, meu caro Félix, é mais importante dar testemunho da beleza ou denunciar o horror?” (p.101)
- “Tenho aqui uma árvore genealógica, veja, é um objeto de arte.”, disse Félix ao apresentar um novo passado para o ministro.” (p.120)
- “Crio enredos por ofício. Efabulo tanto, ao longo do dia, e com tal entusiasmo, que por vezes chego à noite perdido no labirinto das minhas próprias fantasias.” (p.126)
PASSADO/PRESENTE/FUTURO
- “O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre. Eu acreditava nisto antes de conhecer Félix Ventura.” (p.59)
- Na página 61, ao mostrar as fotos que tirou na Chibia, por ocasião em que em que esteve lá pela primeira vez e construiu um túmulo para o pai em cima de uma cova abandonada, o narrador comenta ao enumerar as fotos do lugarejo: “Era o fim, ou era quase o fim, só não se percebia de quê.” O fim de quê? Era o final de vida de Buchmann. O autor faz uso de uma catáfora, uma referência que só se revelará no futuro, no fim do enredo, quando o narrador/osga visita Buchmann na Chibia, onde ele foi viver definitivamente.
- Ao descrever o primeiro encontro entre José Buchmann e Ângela Lúcia na casa de Félix, quando ainda não se havia desvendado o passado comum de ambos, a osga comenta, suspeita: “O silêncio entre eles era cheio de murmúrios, de sombras, de coisas que corriam ao longe, numa época distante, escuras e furtivas.” (p.82) Pela analogia anterior, entre a casa do romance e Angola, estes mesmos silêncios, lacunas, murmúrios e sombras do passado que perpassam a vida dos outros personagens perpassariam também a vida do povo angolano.
- Sobre as lembranças e a felicidade da infância, perdidas em um passado que não volta mais, inatingíveis no presente, Félix comenta: “Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre. Eu fui feliz para sempre na minha infância, lá na Gabela, durante as férias grandes... (p.96)
- Na carta que José Buchmann escreve para Félix, de Nova York, ele diz: “Acredito que sim, tão carentes de um bom passado andamos nós todos, e em particular aqueles que por essa triste pátria nos desgovernam, governando-se.” (p.108)
FICÇÃO/REALIDADE
- Falando a respeito de José Buchmann: “Percebi que o arrastava já a força da própria fábula.” (p.45)
- Ainda a respeito das histórias que criava para o passado de José Buchmann: “– Devia cobrar-lhe horas extraordinárias, pópilas! Acha-me com cara de Sherazade?...” (p.46)
- “Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a mesma frase, e foram felizes para sempre... Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim.” (p.96)
- “Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros.” (p.101)
- Sobre seu passado, Félix relata à Ângela Lúcia: “Excluindo o retrato (de Frederick Douglas), a história que te contei é autêntica. Enfim, pelo menos tanto quanto eu recorde. Sei que tenho por vezes recordações falsas – todos temos, não é assim? – mas penso que essa é verídica.” “– Acredito. Em contrapartida o teu amigo, o senhor José Buchmann, esse é completamente falso, certo? Inventaste-o tu...” Felix negou com veemência. (...) “– Eu, sempre que ouço falar em algo realmente impossível acredito logo. José Buchmann é impossível, não achas?, achamos os dois, então deve ser autêntico.” (p.126)
- “O Ministro está a escrever um livro, A Vida Verdadeira de Um Combatente, denso volume de memórias (...) Para ser mais preciso, a mão com que escreve é alugada – chama-se Félix Ventura.” (p.139)
- “Assim que A Vida Verdadeira de Um Combatente for publicada, a história de Angola ganhará outra consistência, será mais História.” (p.139) “Félix costura a realidade com a ficção, habilmente, minuciosamente, de forma a respeitar datas e factos históricos.” (p.139)
- Ao dar seu parecer a José Buchmann sobre Edmundo Barata, Félix diz: “Não leve a sério tudo que lhe dizem. Aliás, aceita um conselho?, não leve ninguém a sério”.
- “As palmeiras são belíssimas. São de plástico mas só é possível perceber isso quando tocamos nelas. A Cidade do Cabo lembra uma palmeira de plástico. Cidade impressionante, digo-lhe eu, muito limpa, muito arrumada. É um logro no qual apetece acreditar.”
SONHO/REALIDADE
- “Os meus sonhos são, quase sempre, mais verossímeis do que a própria realidade.” (p.50)
·
Quando
Félix comenta com Ângela Lúcia que sonha com a osga – em tese a osga e ele
compartilham os sonhos –, ela diz: “Deus deu-nos os sonhos para que possamos
espreitar o outro lado. Para conversarmos com os nossos mais-velhos. Para
conversamos com Deus. Eventualmente, com osgas.”, supostamente, para conversar
consigo mesmo, com o subconsciente.
·
“A realidade
é dolorosa e imperfeita –, dizia-me: – é essa a sua natureza e por isso a
distinguimos dos sonhos. Quando algo nos parece belo pensamos que só pode ser
um sonho (...) A realidade fere, mesmo quando, por instantes, nos parece
sonho.” (p.102)
MEMÓRIA
- “A nossa memória alimenta-se, em larga medida, daquilo que os outros recordam de nós. Tentemos a recordar como sendo nossas as recordações alheias – inclusive as fictícias.” (p.19?)
- “...a história que te contei é autêntica. Enfim, pelo menos tanto quanto eu recorde. Sei que tenho por vezes recordações falsas – todos temos, não é assim? – mas penso que essa é verídica. – Acredito.” (p.126)
- “A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento. (...) São coisas que ocorrem diante dos olhos, sabemos que são reais, mas tão longe, não as podemos tocar. Algumas estão já tão longes, e o comboio avança tão veloz, que não temos a certeza de que realmente aconteceram.” (p.153)
- Félix, no final do livro, falando de Eulálio/osga: “A memória que me resta dele, aliás, parece-se cada vez mais, a cada hora que passa, com uma construção de areia. A memória de um sonho. Talvez eu o tenha sonhado inteiramente – a ele, a José Buchmann, a Edmundo Barata dos Reis”. “Ângela Lúcia, se a sonhei, sonhei-a muito bem.” (p.197) Há aqui uma inversão total do factual: “A memória de um sonho” é a memória de algo que nunca existiu; ou seja, tudo não passa de criação, de ficção, inclusive a memória/história, seja ela do indivíduo (Félix, José Buchmann) ou do coletivo, do âmbito da nação (a história de Angola).
RISO / IRONIA
- Em algumas passagens da história, a identificação entre as personagens dá-se pelo riso, como no caso de Félix e a osga: “– Pópilas! Pois vossa baixeza ri-se? Extraordinária novidade...” (p.4). “Até a semana passada o albino sempre me ignorou. Desde essa altura, depois de me ter ouvido rir, chega mais cedo.” (p.5)
- “O riso impressiona. Não lhe parece um riso humano?” (p.19), pergunta o estrangeiro que fica perturbado ao ouvir o “riso” da osga. Félix “descobrira que certas espécies de osgas podem produzir sons fortes, semelhantes a gargalhadas” (p.19) Mais à frente Buchmann reconhecerá seu algoz, o ex-detetive Edmundo Barata, pelo riso.
- A osga comenta sobre o amor de Félix por Ângela Lúcia: “Simpatizo com paixões impossíveis. (...) Comove-me o lento cerco de Félix Ventura a Ângela Lúcia.” (p.75) Mas, ouve Félix declarar seu amor e comenta ironicamente: “As declarações de amor, mesmo que ridículas, comovem as mulheres. Ângela Lúcia comoveu-se.” (p.76)
- Ao descrever o Ministro que procura Félix para construir para ele um novo passado, ironiza: “Um homem baixo, gordo, pouco à vontade dentro do próprio corpo. Dir-se-ia que foi rebaixado momentos antes e ainda não se habituou à nova estatura.” “– Você não tem ar condicionado? – Disse isso com horror.” (p.119)
- “Assim que A Vida Verdadeira de Um Combatente for publicada, a história de Angola ganhará outra consistência, será mais História.” (p.139)
- Sobre o importante papel social que a mentira exerce, José Buchmann diz: “Existem dezenas de profissões nas quais saber mentir é uma virtude. Estou a pensar em diplomatas, nos estadistas, nos advogados, nos atores, nos escritores, nos jogadores de xadrez.” (p.133)
·
“...há
pessoas com jeito de rio, que vão da nascente à foz sem quase nunca abandonarem
o leito.” (p.145)
- “As palmeiras são belíssimas. São de plástico mas só é possível perceber isso quando tocamos nelas. A Cidade do Cabo lembra uma palmeira de plástico. Cidade impressionante, digo-lhe eu, muito limpa, muito arrumada. É um logro no qual apetece acreditar.”
BIBLIOGRAFIA
AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de
Janeiro: Gryphus, 2004.
BABHA, Homi. Texto oferecido pela professora. Cap II: Interrogando
a identidade: Frantz Fanon e a prerrogativa pós-colonial. p.71-104
COETZEE, J.M. Elizabeth Costello – oito palestras. in: O
romance na África: São Paulo, Companhia das Letras, p.43-67.
CAMPOS, Maria do Carmo Sepúlveda; SALGADO, Maria Teresa – Org. Introdução
de Russel Hamilton: p.11-35 e Mia Couto e a “incurável doença do sonhar”
de Carmem Lucia Tindó Ribeiro Secco: p.261-283. in: África & Brasil:
Letras em Laços.
Melhor texto sobre esse tema: completo, muitos exemplos, comparações, referencias em outros textos. Perfeio.
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